quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A grandeza Cristã da Idade Média


Por Dr. Rafael Vitola Brodbek

É preciso que as civilizações também se curvem a Jesus, Rei do Universo, que as cidades se conformem à Cidade de Deus, eis que a “compenetração da cidade terrena com a cidade celestial, só pela fé pode ser percebida; porém, é um permanente mistério da história humana.” (Concílio Ecumênico Vaticano II. Constituição Pastoral Gaudium et Spes, de 7 de dezembro de 1965, nº 40)

Nós, cristãos, somos uma legítima família através da graça que de Cristo, pela Igreja, recebemos. E como vivemos em sociedade e não isoladamente – salvo vocações específicas –, é a ela que devemos transformar. Não temos que abandonar e satanizar a cultura, mas evangelizá-la, dialogar com ela para que seja meio de propagação da verdade, da beleza, da unidade.

O Papa Paulo VI já ensinava que evangelizar significa precisamente “levar a Boa Nova a todos os ambientes da humanidade” (Sua Santidade, o Papa Paulo VI. Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, nº 18)

Nosso dever é primar por uma autêntica civilização, e, no ensino do Papa São Pio X, “a civilização do mundo é a Civilização Cristã, tanto mais verdadeira, mais duradoura, mais fecunda em frutos preciosos, quanto é mais autenticamente cristã.” (Sua Santidade, o Papa São Pio X. Encíclica Il Fermo Proposito, de 11 de junho de 1905, in “ASS”, vol. 37, p. 745)

É obrigação dos crentes, sobretudo dos leigos católicos, “penetrar de espírito cristão as mentalidades e os costumes, as leis e as estruturas da comunidade em que vivem.” (Concílio Ecumênico Vaticano II. Decreto Apostolicam Actuositatem, de 18 de novembro de 1965, nº 13)

E qual é o conceito de civilização, sobre o que falávamos, senão a reunião da cultura própria de um povo, das mentalidades, dos costumes, das leis e das demais estruturas?

São estes os ambientes os quais devemos cristianizar, ou melhor, recristianizar, vez que, como veremos, antes do advento deste pensamento moderno, a cultura católica imperou em determinado momento da História – ainda que com seus defeitos e abusos, naturais no percurso da peregrinação terrestre pela qual o homem passa; lembremos que o Reino temporal deve ser reflexo do Reino celestial, porém só este último é perfeito e livre de todo pecado!

Os homens precisam de Cristo, mesmo para a reforma da sociedade.

O campo temporal não escapa da influência do Espírito Santo, de Deus que se manifesta ordinariamente pela Sua Igreja. Somos cidadãos do céu, mas vivemos na terra, e nela devemos nos santificar e construir estruturas que auxiliem os outros a fazerem o mesmo.

Inegável, insistimos, que os bens presentes e seculares, profanos, também podem e devem nos convidar a Deus, mediante a contemplação da ordem, da natureza, da beleza, da verdade, da unidade, do bem.

Vivendo numa sociedade sacralizada torna-se mais fácil atrair os homens a Cristo e, mais, realizar aquilo que é a própria vontade de Deus: atrair tudo a Si, “desígnio de reunir em Cristo todas as coisas, as que estão nos céus e as que estão na terra.” (Ef 1,10)

Auxilia-nos o compêndio da doutrina católica: “O dever social dos cristãos é respeitar e despertar em cada homem o amor da verdade e do bem. Exige que levem a conhecer o culto da única religião verdadeira, que subsiste na Igreja católica e apostólica. Os cristãos são chamados a ser a luz do mundo. Assim, a Igreja manifesta a realeza de Cristo sobre toda a criação e particularmente sobre as sociedades humanas.” (Catecismo da Igreja Católica, 2105)

Que civilização é essa que devemos construir? “Não se deve inventar a Civilização, nem se deve construir nas nuvens a nova sociedade. Ela existiu e existe: é a Civilização Cristã, é a sociedade católica. Não se trata senão de a instaurar e restaurar incessantemente nas suas bases naturais e divinas, contra os ataques sempre remanescentes da utopia malsã, da revolta e da impiedade: instaurar todas as coisas em Cristo.” (Sua Santidade, o Papa São Pio X. Carta Notre Charge Apostolique, de 25 de agosto de 1910)

O Reino de Deus é nos céus.

Achar que é na terra seria cair na utopia e injustiça comunistas, ou no milenarismo gnóstico – raiz cultural daquele, e inspirador de movimentos comunais semelhantes, como a revolta dos anabatistas alemães, dos cátaros albigenses, dos espirituais que deturparam a regra de São Francisco de Assis, dos montanistas que desdenhavam da autoridade episcopal, dos iluministas favorecedores de uma burguesia atéia etc.

Todavia, na terra, os homens refletem seu Deus, e as sociedades devem refletir o Reino. Das civilizações, deve-se procurar instaurar uma que seja cristã, católica, i.e., governada pelo espírito do Evangelho. E ela já teve uma expressão histórica concreta, mesmo com seus defeitos: foi o período medievo.

"Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados. Nessa época, a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil. Então a Religião instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida no grau de dignidade que lhe é devido, em toda a parte era florescente, graças ao favor dos Príncipes e à proteção legítima dos Magistrados. Então o Sacerdócio e o Império estavam ligados entre si por uma feliz concórdia e pela permuta amistosa de bons ofícios. Organizada assim, a sociedade civil deu frutos superiores a toda a expectativa, cuja memória subsiste e subsistirá, consignada como está em inúmeros documentos que artifício algum dos adversários poderá corromper ou obscurecer.” (Sua Santidade, o Papa Leão XIII. Encíclica Immortale Dei, de 1 de novembro de 1885, in “AAS”, vol. XVIII, p. 169)O Papa João Paulo II reitera esse ensino tradicional da Santa Igreja de Cristo:

“Nós somos ainda os herdeiros de longos séculos nos quais se formou na Europa uma Civilização inspirada pelo cristianismo. (...) Na Idade Média, com certa coesão do continente inteiro, a Europa constrói uma Civilização luminosa da qual permanecem muitos testemunhos.” (Sua Santidade, o Papa João Paulo II. Discurso à CEE, em Bruxelas, 21 de maio de 1985, in “L´Osservatore Romano”, 22 de maio de 1985)

A Europa, vemos, é uma realização temporal do primado cristão sobre a matéria social.

Digamos mais, é a Europa medieval a verdadeira guardiã da divina religião, pois foi dela que partiram, intrépidos, os valorosos conquistadores da América, território dado pela Providência justamente no momento em que os ventos terríveis da Reforma Protestante varriam cantões outrora católicos – princípio de uma nova onda gnóstica que inauguraria, junto com o pagão Renascimento e com o humanismo sem Deus, o pensamento moderno, que explodiria, mais tarde, com o absolutismo, com a Revolução Francesa, com o marxismo e todas as formas de socialo-comunismo, com os nazismos e fascismos dos anos 30-40, e com os fundamentalismos e liberalismos de matriz revolucionária que caracterizariam os anos 70 e a década de 80. De uma Espanha banhada de glória pelos séculos da Reconquista cristã aos mouros islâmicos, emerge a expedição de Colombo.

Se olharmos, aliás, para o mapa, veremos que as fronteiras que delimitam a Europa com a Ásia são, geograficamente, de um artificialismo bastante visível. O território é contínuo. Não está separada a Europa da Ásia como está, por exemplo, da Oceania ou da América. Europa e Ásia formam uma só unidade no plano geográfico natural: a Eurásia.

Não são os Urais, na Rússia, que separam os europeus dos asiáticos, porém a cultura que com os primeiros se formou. A Europa é o resultado de anos de experiência de um unificado Império Romano, com as valiosas contribuições gregas, recebendo, outrossim, os costumes germânicos dos bárbaros que, unidos aos povos celtas já submetidos às legiões de César, souberam construir um mundo todo próprio.

Pela influência da religião cristã e da Igreja Católica dela depositária, todos esses elementos se mesclaram e formaram a Europa medieval – prova inequívoca da capacidade católica de abstrair, dentre as culturas, os elementos bons e maus, e valorizar os primeiros mesmo quando não diretamente cristãos.

Convertidos os bárbaros invasores, os reinos germânicos foram tomando o lugar das antigas nações celtas e províncias romanas, e aqueles, por sua vez, pela fragmentação hereditária, favoreceram o aparecimento de um modelo de harmônica e justa desigualdade, o regime feudal.

Tudo isso é básico para entendermos a vocação da Europa, tão esquecida pelos dirigentes da hodierna Comunidade Européia.

A conversão dos povos ocidentais não foi um fenômeno de superfície. O gérmen da vida sobrenatural penetrou no próprio âmago da sua alma, e foi paulatinamente configurando à semelhança de Nosso Senhor Jesus Cristo o espírito outrora rude, lascivo e supersticioso das tribos bárbaras. A sociedade sobrenatural - a Igreja - a estendeu assim sobre toda a Europa a sua contextura hierárquica, e desde as brumas da Escócia até às encostas do Vesúvio foram florindo as dioceses, os mosteiros, as igrejas catedrais, conventuais ou paroquiais, e, em torno delas, os rebanhos de Cristo. (...) Nasceram por essas energias humanas vitalizadas pela graça, os reinos e as estirpes fidalgas, os costumes corteses e as leis justas, as corporações e a cavalaria, a escolástica e as universidades, o estilo gótico e o canto dos menestréis.” (OLIVEIRA, Plínio Corrêa de. A grande experiência de 10 anos de luta)

Pois essa ordem sacral que refletia a realidade celeste e, guardadas as devidas proporções, manifestava, na terra o Reinado de Cristo, se foi deteriorando, pela introdução do orgulho, da vaidade humana, da tentação de Satanás que se traduziu numa nova visão do homem sem Deus – pseudo-humanismo italiano, aspectos renascentistas etc.

Quando decaiu a Alta Idade Média, as universidades católicas iniciaram a cultuar o pensamento clássico sem o tempero filtrador das lições de Santo Tomás de Aquino; junto com as artes gregas e romanas do período áureo, introduziram-se, até mesmo no Vaticano, costumes que as acompanhavam – bebedeiras, orgias, assassinatos por interesse. Desse declínio, acompanhado da releitura social de que o homem pode e deve se libertar de tudo – até de Deus! –, vai-se repetindo o lema “Cristo sim, a Igreja não” (Reforma Protestante), mais tarde mudado em “Deus sim, Cristo não” (Revolução Francesa), que finalmente culminará em “Nem Cristo, nem Deus” (Revolução Russa).

O pensamento moderno é o caos pela tentativa, radical em Nietzsche, de matar Deus e de celebrar o homem – no positivismo de Augusto Comte, “a religião da humanidade”, percebemos quão ridícula foi tal tentativa.

Toda a desordem moral, liberalismo de costumes, ecumenismos desviados, ódio ao catolicismo, críticas infundadas à Idade Média, preguiça mental, e modo de pensar notadamente protestante, romanticamente doentio e filosoficamente cripto-socialista, provém dessa estrutura que resolveu expulsar Deus e Sua Igreja da influência que exercia, sadiamente, sobre o Estado e as sociedades.

A Europa, com a filosofia defendida por seus atuais líderes políticos, ameaça romper com seu passado e fazer triunfar esse modernismo social e cultural.

“Nos nossos dias, percebe-se uma crise cultural de proporções insuspeitáveis. Certamente o substrato cultural de hoje apresenta bom número de valores positivos, muitos dos quais fruto da evangelização; mas ao mesmo tempo, eliminou valores religiosos fundamentais e introduziu concepções enganosas, que não são aceitáveis do ponto de vista cristão.” (Sua Santidade, o Papa João Paulo II. Discurso Nueva Evangelización, Promoción Humana, Cultura Cristiana. Jesucristo ayer, hoy y siempre, em Santo Domingo, a 12 de outubro de 1992, in “suppl. a L´Osservarore Romano”, nº 238, de 14 de outubro de 1992, IV, pp. 21-22)

Não se quer, com isso, pregar que a sociedade medieval foi perfeita.

Abusos houve –mesmo que tenhamos a defesa do brocardo jurídico abusum non tollit usum. Se essa sociedade terminou, somos chamados a estar atentos agora, quando o mundo moderno e o conceito de Estados-Nação estão desaparecendo.

Dialogando com a modernidade, queremos sua conversão.

E mais do que isso, vigiemos e denunciemos as explosões típicas do término de um determinado período histórico – e é exatamente o que estamos vivendo. Precisamos construir uma nova sociedade, uma nova cultura, aproveitando tudo de bom que na atual existe, mas filtrando-a com o bom senso católico.

Ao passado não se volta, tradição não é isso: é passar adiante o que há de bom.

Da Idade Média, ainda guardamos aquilo que nem mesmo é exclusivo dela, a Fé católica e apostólica e aspectos de sua influência nas comunidades humanas.

O Reino não terminou com sua máxima expressão terrena! Aliás, foi máxima até agora, pois nossa vocação é construir uma nova, em que o amor volte a reinar!

Cristo, Rei do Universo não quis só reinar na terra na Idade Média, e sim hoje o quer.

E quer se nos utilizar, Seus membros, Seus instrumentos, através do apostolado, de nosso desempenho dos deveres de estado, do cultivo da oração, em suma, da gana por fazer a Solenidade de Cristo Rei perpetuar-se no campo secular.

Se bem que a Idade Média tenha sido uma época de Cristandade, e o foi por excelência, é preciso deixar bem claro que a Cristandade não se identifica com a Idade Média. A Cristandade é uma vocação permanente da Igreja e dos políticos cristãos. Nem sempre se poderá realizar hic et nunc, por exemplo nos países comunistas, ou inclusive nos países liberais, enquanto sigam sendo tais. Todavia, nem por isso a Igreja e os cristãos que atuam na ordem temporal renunciarão definitivamente a dito ideal. (...) Também hoje, a Igreja, se bem que viva em um regime não-cristão ou, como queria Péguy, pós-cristão, não pode renunciar para sempre ao ideal da Cristandade, que não é outra coisa que a impregnação social dos princípios do Evangelho. E se, porventura, aparecesse uma nova Cristandade, seria substancialmente igual à da Idade Média, ainda que acidentalmente diferente, atendendo à diversidade de condições que caracteriza a época atual em comparação com aquela, tanto no campo econômico como no social. Todo o resgatável deverá ser salvo. Porém, o ideal segue de pé.” (SÁENZ, Pe. Alfredo, SJ. La Cristiandad. Una realidad histórica. Pamplona: Gratis Date, 2005, p. 16)

Depois continuamos, aguardem!

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