terça-feira, 17 de abril de 2012

Caridade


Por Padre Leo Trese

14,30

Terminaram as confissões das crianças, e o ônibus da escola espera com o motor ligado a preciosa carga, ruidosa e inquieta. Enquanto volto ao trabalho de abrir a correspondencia, o envelope já familiar da Associação das Missões de São Papagus olha para mim como cachorrinho abanando a cauda.

Levará um afago na cabeça ou um pontapé? Possivelmente, o afago. Não há dúvida de que quase todos os pedidos que terminem com um "vosso em Cristo" farão sair ao menos um dólar do bolso de um sacerdote.

Mas a Associação de São Papagus é um pouco diferente. Tem aqui no país e lá fora várias centenas de missionários que precisam de igrejas e de auxílio para a subsistência de freiras e catequistas, e de fundos para hospitais e dispensários. Contam com um pessoal, mas precisam, além disso, de meios para que esse pessoal renda.

Leio o último folheto que acabam de mandar-me, em que descrevem as suas ambiciosas tentativas na batalha pela conquista das almas, e experimento no meu íntimo um sentimento de vergonha ao pensar, confortavelmente instalado no meu escritório, como é fácil dedicar-se a almas que não opõem resistência alguma em serem salvas.

A vergonha chega ainda mais fundo. Tem as suas raízes na minha persistente obstinação em fechar os ouvidos às palavras do Senhor: "Vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e depois vem e segue-me".

A sua voz é suave como a brisa, mas Ele quer ser escutado. Não possso alegar ignorancia ou inadivertencia quanto a necessidade de desapego dos bens deste mundo. A fórmula evangélica de perfeição é bastante simples e clara. Se a ignoro, o risco é todo meu.

É claro que não fiz voto de pobreza. Mas Cristo não fala de votos. Fala de nos conformarmos voluntária e cordialmente com Ele. É também claro que poderia ir para o céu limitando-me a observar os Mandamentos, tal como Cristo disse. Mas eu não me ordenei apenas para alcançar o céu; poderia cumprir esse mínimo sendo um pedreiro com mulher e filhos ou outra coisa qualquer. Preferi um lugar que apontava para uma mira mais alta: um certo grau de santidade, um certo grau de amor e intimidade com Cristo.

"Vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres". Tal como o refrão de Corvo de Poe, estas palavras ressoam continuamente aos meus ouvidos, enquanto vejo a lista das necessidades dos missionários. Com três mil dólares poderiam construir uma capela. Três mil dólares foi exatamente a quantia que paguei por uma casa na praia, que não chego a ocupar nem quinze dias por ano, enquanto Cristo espera em Uganda por um teto e um altar.

Para custear a bolsa de estudos de um seminarista indígena, bastariam quatrocentos dólares; foi mais ou menos o que gastei com acessórios para o meu novo carro. Agora vou sentado em estofamento de seda e escuto deliciado Bing Crosby, enquanto de Dacca me mendigam auxílio para uma vocação.

Duzentos dólares seriam suficientes para abastecer um dispensário em Tanganica; foi o que paguei por uma máquina de projetar, um brinquedo caro de que precisava tanto como um pato precisa de guarda-chuva. Bem , mas posso projetar slides coloridos, ainda que os missionários andem faltos de quinino e penicilina.

Não julgo ser cobiçoso. Pelo menos nunca me ocorreu acusar-me de avareza na confissão. Mas o demônio tem seus métodos próprios para enredar-me no cifrão do dólar. Tenho que garantir a minha velhice: "não quero ser um peso para ninguém". Com isso faço um corte de 90% no valor da parábola de Cristo sobre os lírios do campo. E vejo a minha conta corrente no banco engordar de dia para dia.

Depois, está a viagem a Europa, para a qual venho poupando há tanto tempo. Quero conhecer Lourdes, Fátima e Roma antes de morrer. Talvez Nossa Senhora viesse a ser mais venerada se se pudesse dedicar-lhe uma capelinha alguma aldeola chinesa - mas nesse caso...adeus viagem a Europa.

Poderia esperar e contentar-me com o sonho de ver a Europa do céu, que é um mirante nitidamente superior, mas a gente tambem precisa ter algum projeto nesta terra e divertir-se um pouco. Pelo menos se se quer tomar o Evangelho com um certo jogo de cintura...

"Vai e vende tudo o que tens e dá...

Não haverá ninguém que mude o disco, por favor?

Suponhamos que gosto de apalpar a carteira, bem recheada, quase tanto como um pai de família que tem de alimentar seis crianças esfomeadas; suponhamos que me encho de satisfação jogando na mesa do restaurante uma nota de vinte dólares para pagar o jantar, enquanto acaricio entre os dedos um cálice de licor; suponhamos que desfruto andando de carro mais de que de onibus; não há pecado algum em nada disso.

Não estou acumulando nenhuma fortuna. O meu testamento não escandalizará ninguém quando o abrirem. Nunca deixo de atender pedidos de dinheiro como estes. Contribuo sempre com um dólar, as vezes com dois e até cinco.

"As migalhas que caem das mesas dos ricos..."

Que é isso?

Uma nova voz que se junta as palavras penetrantes que tenho tentado afogar? É o Evangelho que procura encurralar-me, sem me deixar um cantinho livre onde me possa defender: "Vai, vende tudo o que tens..., e tereis um tesouro no céu...,vem e segue-me...,não tecem nem fiam..., recebereis cem por um..."

Está certo! Está certo! Sei que não posso dizer ao Evangelho: "Cala-te".

Tentarei fazer-lhe caso. Talvez algum dia me surpreenda gratamente com o resultado

Fonte: Vaso de Argila

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