sábado, 19 de maio de 2012

Mistério de Fé


 Por João Paulo II

« O Senhor Jesus, na noite em que foi entregue » (1 Cor 11, 23), instituiu o sacrifício eucarístico do seu corpo e sangue. As palavras do apóstolo Paulo recordam-nos as circunstâncias dramáticas em que nasceu a Eucaristia. Esta tem indelevelmente inscrito nela o evento da paixão e morte do Senhor. Não é só a sua evocação, mas presença sacramental. É o sacrifício da cruz que se perpetua através dos séculos. Esta verdade está claramente expressa nas palavras com que o povo, no rito latino, responde à proclamação « mistério da fé » feita pelo sacerdote: « Anunciamos, Senhor, a vossa morte ».

A Igreja recebeu a Eucaristia de Cristo seu Senhor, não como um dom, embora precioso, entre muitos outros, mas como o dom por excelência, porque dom d'Ele mesmo, da sua Pessoa na humanidade sagrada, e também da sua obra de salvação. Esta não fica circunscrita no passado, pois « tudo o que Cristo é, tudo o que fez e sofreu por todos os homens, participa da eternidade divina, e assim transcende todos os tempos e em todos se torna presente ».(Catecismo n.1085)

Quando a Igreja celebra a Eucaristia, memorial da morte e ressurreição do seu Senhor, este acontecimento central de salvação torna-se realmente presente e « realiza-se também a obra da nossa redenção ». Este sacrifício é tão decisivo para a salvação do género humano que Jesus Cristo realizou-o e só voltou ao Pai depois de nos ter deixado o meio para dele participarmos como se tivéssemos estado presentes.

 Assim cada fiel pode tomar parte nela, alimentando-se dos seus frutos inexauríveis. Esta é a fé que as gerações cristãs viveram ao longo dos séculos, e que o magistério da Igreja tem continuamente reafirmado com jubilosa gratidão por dom tão inestimável.[..] Que mais poderia Jesus ter feito por nós?Verdadeiramente, na Eucaristia demonstra-nos um amor levado até ao « extremo » (cf. Jo13, 1), um amor sem medida.

 Este aspecto de caridade universal do sacramento eucarístico está fundado nas próprias palavras do Salvador. Ao instituí-lo, não Se limitou a dizer « isto é o meu corpo », « isto é o meu sangue », mas acrescenta: « entregue por vós (...) derramado por vós » (Lc 22, 19-20). Não se limitou a afirmar que o que lhes dava a comer e a beber era o seu corpo e o seu sangue, mas exprimiu também o seu valor sacrificial, tornando sacramentalmente presente o seu sacrifício, que algumas horas depois realizaria na cruz pela salvação de todos. « A Missa é, ao mesmo tempo e inseparavelmente, o memorial sacrificial em que se perpetua o sacrifício da cruz e o banquete sagrado da comunhão do corpo e sangue do Senhor ».

A Igreja vive continuamente do sacrifício redentor, e tem acesso a ele não só através duma lembrança cheia de fé, mas também com um contacto actual, porque este sacrifício volta a estar presente, perpetuando-se, sacramentalmente, em cada comunidade que o oferece pela mão do ministro consagrado. Deste modo, a Eucaristia aplica aos homens de hoje a reconciliação obtida de uma vez para sempre por Cristo para humanidade de todos os tempos.

Com efeito, « o sacrifício de Cristo e o sacrifício da Eucaristia são um único sacrifício ». Já o afirmava em palavras expressivas S. João Crisóstomo: « Nós oferecemos sempre o mesmo Cordeiro, e não um hoje e amanhã outro, mas sempre o mesmo. Por este motivo, o sacrifício é sempre um só. [...] Também agora estamos a oferecer a mesma vítima que então foi oferecida e que jamais se exaurirá ».(Homilias sobre a Carta aos Hebreus, 17, 3: PG 63, 131.)

A Missa torna presente o sacrifício da cruz; não é mais um, nem o multiplica. O que se repete é a celebração memorial, a « exposição memorial » (memorialis demonstratio), de modo que o único e definitivo sacrifício redentor de Cristo se actualiza incessantemente no tempo. Portanto, a natureza sacrificial do mistério eucarístico não pode ser entendida como algo isolado, independente da cruz ou com uma referência apenas indirecta ao sacrifício do Calvário.

 Em virtude da sua íntima relação com o sacrifício do Gólgota, a Eucaristia é sacrifício em sentido próprio, e não apenas em sentido genérico como se se tratasse simplesmente da oferta de Cristo aos fiéis para seu alimento espiritual. Com efeito, o dom do seu amor e da sua obediência até ao extremo de dar a vida (cf. Jo 10,17-18) é em primeiro lugar um dom a seu Pai. Certamente, é um dom em nosso favor, antes em favor de toda a humanidade (cf. Mt26, 28; Mc 14, 24; Lc 22, 20; Jo 10, 15), mas primariamente um dom ao Pai: « Sacrifício que o Pai aceitou, retribuindo esta doação total de seu Filho, que Se fez “obediente até à morte” (Flp 2, 8), com a sua doação paterna, ou seja, com o dom da nova vida imortal na ressurreição ».(João Paulo II, Carta enc. Redemptor hominis)

Ao entregar à Igreja o seu sacrifício, Cristo quis também assumir o sacrifício espiritual da Igreja, chamada por sua vez a oferecer-se a si própria juntamente com o sacrifício de Cristo. Assim no-lo ensina o Concílio Vaticano II: « Pela participação no sacrifício eucarístico de Cristo, fonte e centro de toda a vida cristã, [os fiéis] oferecem a Deus a vítima divina e a si mesmos juntamente com ela ».

 A Páscoa de Cristo inclui, juntamente com a paixão e morte, a sua ressurreição. Assim o lembra a aclamação da assembleia depois da consagração: « Proclamamos a vossa ressurreição ». Com efeito, o sacrifício eucarístico torna presente não só o mistério da paixão e morte do Salvador, mas também o mistério da ressurreição, que dá ao sacrifício a sua coroação. Por estar vivo e ressuscitado é que Cristo pode tornar-Se « pão da vida » (Jo 6, 35.48), « pão vivo » (Jo 6, 51), na Eucaristia. S. Ambrósio lembrava aos neófitos esta verdade, aplicando às suas vidas o acontecimento da ressurreição: « Se hoje Cristo é teu, Ele ressuscita para ti cada dia ». Por sua vez, S. Cirilo de Alexandria sublinhava que a participação nos santos mistérios « é uma verdadeira confissão e recordação de que o Senhor morreu e voltou à vida por nós e em nosso favor ».

15. A reprodução sacramental na Santa Missa do sacrifício de Cristo coroado pela sua ressurreição implica uma presença muito especial, que – para usar palavras de Paulo VI – « chama-se “real”, não a título exclusivo como se as outras presenças não fossem “reais”, mas por excelência, porque é substancial, e porque por ela se torna presente Cristo completo, Deus e homem ». Reafirma-se assim a doutrina sempre válida do Concílio de Trento: « Pela consagração do pão e do vinho opera-se a conversão de toda a substância do pão na substância do corpo de Cristo nosso Senhor, e de toda a substância do vinho na substância do seu sangue; a esta mudança, a Igreja católica chama, de modo conveniente e apropriado, transubstanciação ».

 Verdadeiramente a Eucaristia é mysterium fidei, mistério que supera os nossos pensamentos e só pode ser aceite pela fé, como lembram frequentemente as catequeses patrísticas sobre este sacramento divino. « Não hás-de ver – exorta S. Cirilo de Jerusalém – o pão e o vinho [consagrados] simplesmente como elementos naturais, porque o Senhor disse expressamente que são o seu corpo e o seu sangue: a fé t'o assegura, ainda que os sentidos possam sugerir-te outra coisa ».

« Adoro te devote, latens Deitas »: continuaremos a cantar com S. Tomás, o Doutor Angélico. Diante deste mistério de amor, a razão humana experimenta toda a sua limitação.  Permanece o limite apontado por Paulo VI: « Toda a explicação teológica que queira penetrar de algum modo neste mistério, para estar de acordo com a fé católica deve assegurar que na sua realidade objectiva, independentemente do nosso entendimento, o pão e o vinho deixaram de existir depois da consagração, de modo que a partir desse momento são o corpo e o sangue adoráveis do Senhor Jesus que estão realmente presentes diante de nós sob as espécies sacramentais do pão e do vinho ».

 A eficácia salvífica do sacrifício realiza-se plenamente na comunhão, ao recebermos o corpo e o sangue do Senhor. O sacrifício eucarístico está particularmente orientado para a união íntima dos fiéis com Cristo através da comunhão: recebemo-Lo a Ele mesmo que Se ofereceu por nós, o seu corpo entregue por nós na cruz, o seu sangue « derramado por muitos para a remissão dos pecados » (Mt 26, 28).

 Recordemos as suas palavras: « Assim como o Pai, que vive, Me enviou e Eu vivo pelo Pai, assim também o que Me come viverá por Mim » (Jo 6, 57). O próprio Jesus nos assegura que tal união, por Ele afirmada em analogia com a união da vida trinitária, se realiza verdadeiramente. A Eucaristia é verdadeiro banquete, onde Cristo Se oferece como alimento. A primeira vez que Jesus anunciou este alimento, os ouvintes ficaram perplexos e desorientados, obrigando o Mestre a insistir na dimensão real das suas palavras: « Em verdade, em verdade vos digo: Se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós » (Jo 6, 53). Não se trata de alimento em sentido metafórico, mas « a minha carne é, em verdade, uma comida, e o meu sangue é, em verdade, uma bebida » (Jo 6, 55).

Através da comunhão do seu corpo e sangue, Cristo comunica-nos também o seu Espírito. Escreve S. Efrém: « Chamou o pão seu corpo vivo, encheu-o de Si próprio e do seu Espírito. [...] E aquele que o come com fé, come Fogo e Espírito. [...] Tomai e comei-o todos; e, com ele, comei o Espírito Santo. De facto, é verdadeiramente o meu corpo, e quem o come viverá eternamente ».(Homilia IV para a Semana Santa: CSCO 413 / Syr. 182, 55.)

 A Igreja pede este Dom divino, raiz de todos os outros dons, na epiclese eucarística. Assim reza, por exemplo, a Divina Liturgia de S. João Crisóstomo: « Nós vos invocamos, pedimos e suplicamos: enviai o vosso Santo Espírito sobre todos nós e sobre estes dons, [...] para que sirvam a quantos deles participarem de purificação da alma, remissão dos pecados, comunicação do Espírito Santo ».E, no Missal Romano, o celebrante suplica: « Fazei que, alimentando-nos do Corpo e Sangue do vosso Filho, cheios do seu Espírito Santo, sejamos em Cristo um só corpo e um só espírito ». Assim, pelo dom do seu corpo e sangue, Cristo aumenta em nós o dom do seu Espírito, já infundido no Baptismo e recebido como « selo » no sacramento da Confirmação.

A aclamação do povo depois da consagração termina com as palavras « Vinde, Senhor Jesus », justamente exprimindo a tensão escatológica que caracteriza a celebração eucarística (cf. 1 Cor 11, 26). A Eucaristia é tensão para a meta, antegozo da alegria plena prometida por Cristo (cf. Jo 15, 11); de certa forma, é antecipação do Paraíso, « penhor da futura glória ».A Eucaristia é celebrada na ardente expectativa de Alguém, ou seja, « enquanto esperamos a vinda gloriosa de Jesus Cristo nosso Salvador ». Quem se alimenta de Cristo na Eucaristia não precisa de esperar o Além para receber a vida eterna: já a possui na terra, como primícias da plenitude futura, que envolverá o homem na sua totalidade.

De facto, na Eucaristia recebemos a garantia também da ressurreição do corpo no fim do mundo: « Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e Eu ressuscitá-lo-ei no último dia » (Jo 6, 54). Esta garantia da ressurreição futura deriva do facto de a carne do Filho do Homem, dada em alimento, ser o seu corpo no estado glorioso de ressuscitado. Pela Eucaristia, assimila-se, por assim dizer, o « segredo  » da ressurreição. Por isso, S. Inácio de Antioquia justamente definia o Pão eucarístico como « remédio de imortalidade, antídoto para não morrer ».

 A tensão escatológica suscitada pela Eucaristia exprime e consolida a comunhão com a Igreja celeste. Não é por acaso que, nas Anáforas orientais e nas Orações Eucarísticas latinas, se lembra com veneração Maria sempre Virgem, Mãe do nosso Deus e Senhor Jesus Cristo, os anjos, os santos apóstolos, os gloriosos mártires e todos os santos. Trata-se dum aspecto da Eucaristia que merece ser assinalado: ao celebrarmos o sacrifício do Cordeiro unimo-nos à liturgia celeste, associando-nos àquela multidão imensa que grita: « A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro » (Ap 7, 10). A Eucaristia é verdadeiramente um pedaço de céu que se abre sobre a terra; é um raio de glória da Jerusalém celeste, que atravessa as nuvens da nossa história e vem iluminar o nosso caminho.

 Consequência significativa da tensão escatológica presente na Eucaristia é o estímulo que dá à nossa caminhada na história, lançando uma semente de activa esperança na dedicação diária de cada um aos seus próprios deveres. De facto se a visão cristã leva a olhar para o « novo céu » e a « nova terra » (Ap 21, 1), isso não enfraquece, antes estimula o nosso sentido de responsabilidade pela terra presente.

 Desejo reafirmá-lo com vigor ao início do novo milénio, para que os cristãos se sintam ainda mais decididos a não descurar os seus deveres de cidadãos terrenos. Têm o dever de contribuir com a luz do Evangelho para a edificação de um mundo à medida do homem e plenamente conforme ao desígnio de Deus.
Muitos são os problemas que obscurecem o horizonte do nosso tempo. Basta pensar quanto seja urgente trabalhar pela paz, colocar sólidas premissas de justiça e solidariedade nas relações entre os povos, defender a vida humana desde a concepção até ao seu termo natural. E também que dizer das mil contradições dum mundo « globalizado », onde parece que os mais débeis, os mais pequenos e os mais pobres pouco podem esperar? É neste mundo que tem de brilhar a esperança cristã! Foi também para isto que o Senhor quis ficar connosco na Eucaristia, inserindo nesta sua presença sacrificial e comensal a promessa duma humanidade renovada pelo seu amor. 

É significativo que, no lugar onde os Sinópticos narram a instituição da Eucaristia, o evangelho de João proponha, ilustrando assim o seu profundo significado, a narração do « lava-pés », gesto este que faz de Jesus mestre de comunhão e de serviço (cf. Jo13, 1-20). O apóstolo Paulo, por sua vez, qualifica como « indi- gna » duma comunidade cristã a participação na Ceia do Senhor que se verifique num contexto de discórdia e de indiferença pelos pobres (cf. 1 Cor 11, 17-22.27-34).

Anunciar a morte do Senhor « até que Ele venha » (1 Cor 11, 26) inclui, para os que participam na Eucaristia, o compromisso de transformarem a vida, de tal forma que esta se torne, de certo modo, toda « eucarística ». São precisamente este fruto de transfiguração da existência e o empenho de transformar o mundo segundo o Evangelho que fazem brilhar a tensão escatológica da celebração eucarística e de toda a vida cristã: « Vinde, Senhor Jesus! » (cf. Ap 22, 20).

Fonte: Ecclesia da Eucharistia

Nenhum comentário:

Postar um comentário