Por Georges Suffert
Na verdade, esse discurso gnóstico exprime uma revolta contra o Deus que abandonou os homens. Ele não veio enquanto todos O esperavam. Deixou aqui um universo apavorante e inacabado. Essa corrente de pensamento não se perderá no tempo. Vai aparecer com vários disfarces (o dos seres anjos, o das esferas externas e, naturalmente, O de Sophia, isto é, a sabedoria).
Em Alexandria - berço da gnose judaico-cristã - é que as diversas seitas gnósticas descobrirão seu poder e esbarrarão com um discurso cristão agora estruturado. O que podem fazer os bispos diante desse desvio inquietante? Pouco.
Eles pregam e, sobretudo, corrigem os desvios evidentes. Justino (falecido em 165) e Irineu (falecido em 200) consagram obras inteiras à denúncia dessa primeira doença do cristianismo. Mas ambos já são, à sua maneira, historiadores. No momento, cabe aos bispos intervir. E, principalmente, ao primeiro dentre eles, o bispo de Roma. Ele faz isso a seu modo: com prudência.
Clemente, entre outros, aferra-se aos hábitos do judaico-cristianismo, à falsa ciência que alimenta as ilusões e os medos. Mas faz isso com cautela. Clemente é mesmo um papa. Mas o papa, então, é apenas um bispo. A posição de sucessor de Pedro lhe confere um prestígio que ele só usará mais tarde.
Durante os primeiros séculos da Igreja, o termo papa foi, aliás, usado para designar todos os bispos. Aos poucos é que acabará designando a função e os títulos do bispo de Roma. A carta de Clemente aos coríntios - um dos raros documentos que possuímos sobre essa época - é um bom exemplo do que é então ser o bispo da capital do Império.
A Igreja, em todo caso, vai reagir e estancar essa revolta estranha. Mas suas chances de conseguir isso serão tanto maiores quanto mais completa estiver sua helenização.
Mani quer conciliar Buda, Zaratustra e Jesus
Mani terá sido um gnóstico? Mais ou menos. Mas esse personagem singular, que oferecerá ao mundo uma palavra e um adjetivo (um discurso maniqueísta, diz-se ainda), instala-se entre o cristianismo, a gnose e o masdeísmo. Ele é mais conhecido pela refutação de seus adversários do que por suas próprias obras: a maioria desapareceu.
No entanto, Mani escreveu muito. É sem dúvida o único fundador de uma religião que tentou redigir pessoalmente o conteúdo de sua pregação e de sua fé. O maniqueísmo não é uma heresia cristã. É uma religião à parte. Não durará muito, mas sua influência direta, e sobretudo indireta, não é de desprezar.
Mani nasceu em abril de 216, na Babilônia. É de boa família; afirma-se até que era aparentado com os Arsarcidas [250 a.C.-220 d.C.] Ele estuda, absorve sucessivamente o cristianismo, o zoroastrismo, mas também o budismo. Afirma ter recebido mensagens do céu. Seu papel: terminar as três revoluções iniciadas por seus predecessores - Buda, Zaratustra e Jesus .
A princípio, ele é apoiado pelo rei da Pérsia, Shapur I - pertencente a dinastia sassânida -, mas os masdeístas, ligados à antiga religião de Zaratustra, esperam a ocasião de se livrar desse personagem que perturba sua religião tradicional. Quando o rei morre, Mani é preso, julgado, condenado e morre acorrentado em sua cela. Tinha 60 anos.
Sua doutrina - que penetrará até na China - é uma gnose elaborada. O conhecimento e a razão é que permitem que o homem se salve. Na verdade, os vivos são animais perdidos: "A situação em que o homem vive é por ele experimentada como estranha, insuportável, radicalmente má." que veio fazer o homem neste mundo de terror? Salvar uma pequena parte da luz que nele habita - esta luz é o dom de Deus para cada um de nós. Um Deus engajado, aliás, na luta sem fim com o mal. Ao cabo dessa batalha monstruosa, os justos reencontrarão o reino de antes da queda, os outros serão lançados novamente nas trevas. Eles cairão em um buraco e pedra será colocada para obstruí-lo.
Como viver no meio desse campo de batalha? Mani propõe duas respostas.
Uma para os ouvintes: eles podem viver como os outros homens, ganhar dinheiro e praticar a sexualidade (contanto que evitem, na medida do possível, gerar filhos).
Outra para os eleitos: eles devem evitar a sexualidade, comer apenas alguns legumes e consagrar todo o seu tempo à meditação. Portanto, uma oposição radical entre um hedonismo desenfreado e um ascetismo rigoroso.
Essa religião estranha fará com que surjam comunidades no Oriente, em Alexandria, na África (lembremo-nos de Agostinho, antes de converter-se ao cristianismo, foi maniqueísta durante quase oito anos) e em Roma.
O imperador da China, em 694, dará liberdade de culto aos maniqueístas. Mais tarde, reencontraremos as linhas mestras dos maniqueístas nos cátaros, nos séculos XII e XIII. Eles se consideram "puros", "eleitos". Até a queda de Monségur, em 1244. Eles também acreditam na dicotomia entre o Bem e o Mal, a Luz e as Trevas. corpo, para eles, é uma prisão da alma. Eles representam a forma mais elaborada do gnosticismo. Essa religião, ao longo de toda a sua história, foi perseguida tanto no Ocidente quanto no Oriente.
Aí, mais uma vez, o aumento do poder - filosófico, teológico e estrutural do cristianismo é que reduzirá esta religião sombria e aristocrática a ser apenas, definitivamente, um pensamento marginal. É preciso então seguir as etapas da helenização do cristianismo. Toda a seqüência dependerá desse momento.
Depois veremos: Alexandria e a helenização do cristianismo: Filo e Clemente
Mais AQUI
Nenhum comentário:
Postar um comentário