sábado, 26 de julho de 2014

“Descobri que o Mundo Morre de Coletivismo”


Por Gustavo Corção


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"O coletivismo de que morre o mundo e de que vivem os novos aventureiros é a teoria do ajuntamento sem unidade; é a tentativa de encontrar significado na multidão, já que não se consegue descobrir o significado de cada um: é a conspiração dos que se ignoram; a união dos que se isolam; a sociabilidade firmada nos mal-entendidos; o lugar geométrico dos equívocos.
Os homens que perderam o segredo da alma ora se isolam, ora se aglomeram.
A história do homem é uma dança em compasso binário. O erro é um pêndulo. E assim o mundo vai trilhando seu sinuoso delírio. Enquanto dura um certo contentamento do egoísmo, os homens conseguem viver numa esportiva competição (lei da oferta e da procura, cada umpor si e Deus por todos), dividindo a sociedade em compartimentos estanques (amigos amigos, negócios à parte), e chegam a formular e a viver uma doutrina do individualismo apenas temperada, na inevitável convivência, por um acordo extrínceco, por um contrato social. Quando, porém, se esgota a euforia dessa espécie de atomização social e nas almas pesa a solidão, correm todos a se amontoar, a encher as praças públicas levantando ora o braço direito, ora o esquerdo, em sinal de congraçamento; ou no morno contato dos ombros, dos peitos, das nádegas, no trépido aconchego de curral, os homens coletivos sorriem reconfortados, com um sorriso de rua, felizes de terem escapado, por um triz! do pesadelo horrível de terem almas. Falam então de solidariedade humana, isto é, do sentimento de estarem colados uns aos outros, pelos hombros, pelos peitos, pelas nádegas.
Qual dos dois será o pior, o egoísmo que se isola ou o egoísmo que se congrega? É difícil decidir. Será pior aquele de que o mundo se cansou; será melhor aquele de cujos incômodos o mundo esqueceu. E assim vamos, como o viajante sem cabine, que passa a noite na ponta escassa de um banco a jogar com sua anatomia, a mudar de posição encontrando um fugaz alívio nas mesmas atitudes que já lhe deram cãibras. E assim vamos, de contorção em contorção, de alívio em alívio, e o que ainda é pior, de entusiasmo em entusiasmo.
Eu quereria demonstrar, se tivesse tempo, que a verdadeira sociedade só é possível quando tiver raízes que desçam aos abismos da subjetividade. Pois somente dessas profundezas pode jorrar a verdadeira generosidade. Em outras palavras, o que eu quereria demonstrar é que as verdadeiras aberturas do homens estão no seu interior, no claustro, no jardim secreto de seu coração.
Essa seria a minha bandeira, se ainda pudesse reunir as forças que dissipei numa vida absurda. Chego tarde. Hoje, só de pensar no empreendimento, sinto um imenso enjôo, e assalta-me a imaginação o infinito enfado de polêmicas que eu deveria sustentar, dos indivíduos que me viriam provar, com esse ar profundo, peculiar ao medíocre que encontrou uma doutrina na justa medida de sua mediocridade (la poule qui a trouvé un sou), que dois e dois são quatro, e que quatro vezes quatro são dezesseis, nove fora, sete. Teria eu de explicar mil vezes, em termos cordiais e sugestivos, que não ignoro o fato de ser preciso quatro portugueses para carregar um piano; e que também não me escapa a sutileza da regra de três, pela qual dez homens fazem um muro em menos tempo do que cinco.
Na verdade, a maioria das demonstrações socialistas começa pela suposição de trazer ao mundo a sensacional descoberta de que dois e dois são quatro. Mesmo sem a doença, não sei se teria ânimo para o hercúleo empreendimento de dizer todos os dias as mesmas coisas, de retomar cem vezes o mesmo raciocínio, para o cabo de dez anos, de vinte, de cem anos, encontrar-me no ponto de partida a explicar que o homem só pode acertar razoavelmente os problemas exteriores quando tiver descoberto, ao menos em seus vagos lineamentos, o segredo do seu ser.
Com a doença, paro nestas notas o meu ardente apostolado. A pouca força que me resta mal chega para experimentar, em três ou quatro botões de rosas, o que eu poderia ver nas vidas dos homens: o ritmo, a harmonia do desabrochar perfeito".
(Gustavo Corção: Lições de Abismo, Editora Agir, pág. 87-89, 2004)

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