sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Lembranças de Minha Vida


Por Bento XVI

Enxerto do Livro: Lembrança de minha vida.




"Para nós, crianças, tudo isso era misterioso e interessante; para mamãe, no entanto, encarregada de todo o serviço da casa, significava muita fadiga. Ela sentia-se muito mais feliz quando podia passear um pouco conosco.

Gostavamos de entrar na vizinha Áustria.  Era uma sensação diferente podermos estar no “exterior”, andando apenas um pouco; e lá se falava a mesma língua e, com pequenas diferenças, até o nosso mesmo dialeto.

No tempo que antecedia o Natal, procurávamos a alface campestre e, ensinados por mamãe, encontrávamos nas várzeas muita coisa para nosso presépio, do qual gostávamos sobremaneira.

Tenho as mais belas lembranças dos dias de Natal, quando podíamos fazer uma visita a uma senhora idosa, cujo presépio enchia quase toda sua casa; com todas as suas maravilhas, jamais nos cansávamos de olhá-lo. Também me vem agora à memória o sótão onde um amigo nos apresentava seu teatro de marionetes, cujas figuras davam asas à nossa imaginação.

Todavia, percebíamos também que nosso alegre mundo infantil não estava dentro de um paraíso.
Atrás das belas fachadas escondia-se muita pobreza. Aquela pequena cidade fronteiriça, esquecida pelo desenvolvimento, estava evidentemente passando por uma grave crise econômica.

O clima político tinha se exacerbado a olhos vistos. Embora eu não entendesse os pormenores do que lá se passava, lembro-me dos cartazes de propaganda eleitoral e das permanentes lutas políticas às quais se referiam.

A incapacidade da República dessa época de criar estabilidade política, e com isso um agir político convincente, manifestava-se naquela extravagância das lutas entre os partidos, coisa que até uma criança percebia.  O partido nazista tentava cada vez mais se impor; declarava ser a última alternativa contra o caos ameaçador.

Quando Hitler fracassou em sua tentativa de ser eleito presidente do Reich, meu pai e minha mãe mostraram-se aliviados, mas também não se alegraram com a eleição de Hindenburg para presidente, pois não viam nele uma garantia segura contra os avanços dos potentados de camisa marrom. Muitas vezes meu pai teve que intervir contra a violência dos nazistas por ocasião dos comícios. Percebíamos, também, a enorme preocupação que pesava sobre ele, e da qual, mesmo no dia-a-dia, não conseguia livrar-se.


OS PRIMEIROS ANOS NA ESCOLA DA ALDEIA – À SOMBRA

Em virtude dos problemas, papai resolveu, no final de 1932, mudar-se mais uma vez; em Tittmoning tinha se exposto demais, enfrentando os “marrons”. Em dezembro, pouco antes do Natal, mudamo-nos para nossa nova morada em Aschau, às margens do rio Inn, um lugarejo rural, pacato, com fazendas grandes e vistosas.

Para mamãe, a bonita casa que agora nos era destinada foi uma agradável surpresa. Um fazendeiro construíra uma vivenda, moderna segundo os critérios da época, com sacada e balcão, e a alugara à comissária de polícia. 

Os escritórios e a morada do segundo oficial encontravam-se no andar térreo. A nós foi destinado o segundo andar, onde encontramos um lar confortável.  Na frente da casa havia um jardim com um belo cruzeiro e um grande gramado com um viveiro de carpas, no qual eu, aliás, ao brincar, um dia quase me afoguei. 

No meio do povoado havia, como tem que ser na Baviera, uma cervejaria imponente, em cuja taberna os homens se encontravam aos domingos. A praça principal encontrava-se no outro extremo da aldeia, com mais uma considerável taberna, uma igreja e uma escola.

No início, nós, crianças, sentíamos falta, naturalmente, da grandeza da pequena cidade da qual havíamos tido tanto orgulho. A graciosa igreja da aldeia, em estilo neogótico, não se comparava àquilo que costumávamos ver em Tittmoning. 

O comércio era mais simples e o dialeto, um bocado mais rude, de sorte que no começo não entendíamos uma porção de palavras.  Mas em bem pouco tempo acabamos gostando de nossa aldeia e aprendemos a dar valor a suas belezas peculiares. Logo no começo, porém, fomos surpreendidos por acontecimentos históricos. 

Tínhamos chegado em dezembro de 1932. Em janeiro de 1933, Hindenburgo entregou a Hitler a função de chanceler do Reich, o que na linguagem do partido logo foi chamado de “tomada do poder” – o que de fato foi.

Depois continuamos.

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