quarta-feira, 11 de março de 2009

Religião do Amor, Religião da Cruz?


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Entrevista com Santo Agostinho de Hipona

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Tenho a impressão de que, hoje como ontem, o grande obstáculo para que muitas pessoas - sejamos sinceros: muitos cristãos - abracem de verdade o cristianismo é a Cruz. Com efeito, por que a religião do amor há de ser a religião da Cruz?

Santo Agostinho nos responde:

“ Era preciso mostrar ao homem quanto Deus nos amou e o que éramos quando nos amou: "quanto", para que não desesperássemos; "o que éramos", para que não nos ensoberbecêssemos. Gostaria de dizer ao ouvido de cada um: "A Vida eterna assumiu a morte, a Vida eterna quis morrer. Não morreu segundo o que era em Si mesma antes de morrer; morreu segundo O que tinha de comum contigo, depois de encarnada. De ti recebeu a natureza segundo a qual devia morrer por ti; e assumiu a morte para matar a tua morte. Escuta-me: és cristão, és membro de Cristo; considera bem o que és, pensa a que preço foste resgatado. Cristo quis padecer por ti. Ensinou-te a padecer, e ensinou-te padecendo Ele primeiro. Ter-lhe-iam parecido muito pouco as suas palavras, se não as tivesse acompanhado com o seu exemplo".

E como foi que nos ensinou? – o tom agora é intimo, dolorido. Como foi que nos ensinou? Pendia da cruz, e nós nos assanhávamos contra Ele; estava preso à cruz por ásperos cravos, mas não perdia a mansidão. Nós nos enfurecíamos contra Ele, ladrávamos à sua volta como cães e o insultávamos enquanto permanecia pendurado. Como loucos furiosos, atormentávamos o único Médico posto no meio de nós; e no entanto, pendurado, Ele nos curava. Pai, dizia, perdoa-lhes porque não sabem o que jazem. Pedia e pendia; e não descia, porque ia transformar o seu Sangue no remédio para esses loucos furiosos ...

Nós jazíamos mortos na nossa carne de pecado, e Cristo adaptou-se à semelhança da carne de pecado. Porque morreu quem não tinha razão para morrer; morreu o único livre dentre os mortos, porque toda a carne humana era certamente carne de pecado, e ... como é que essa carne haveria de reviver, se Aquele que não tinha pecado não se adaptasse ao morto, vindo até nós sob a semelhança da carne de pecado? Senhor, Tu padeceste por nós, não por Ti, porque não tinhas culpa, e te submeteste à pena para livrar-nos da culpa e da pena! Em conseqüência, também nós devemos recapacitar e dizer: [i]Senhor, compadece-te de mim; cura a minha alma, porque pequei contra Ti. [/i]Ó Senhor, dá-me sofrimentos, já que não poupaste o teu Unigênito. Ele foi atormentado, sem ter pecado, e eu ... Se foi retalhado Aquele que não tinha podridão, se a nossa própria Medicina não rejeitou o fogo medicinal, será razoável que nós nos revoltemos contra o Médico e Cirurgião, quer dizer, contra Aquele que nos cura do pecado através dos sofrimentos que nos permite padecer? Entregue- mo-nos em cheio nas mãos do Médico, pois Ele não erra, cortando a carne sã em vez da gangrenada; Ele conhece bem o que ausculta, conhece o vício por ter criado a natureza; conhece bem o que criou e teve de assumir por causa da nossa leviandade.


Não faltam, porém, aqueles que sustentam que isso de "tomar a Cruz" está ultrapassado, e que tudo o que signifique aceitar e buscar o sofrimento não passa de exagero neurótico.

“É preciso entender que foi o homem quem talhou para si mesmo um caminho áspero. Mas esse caminho foi percorrido primeiro por Cristo, no seu regresso para o Pai; e por isso Ele pode dizer-nos: Tome cada um a sua cruz e siga-me. Que significa isto? Que, quando começarmos a segui-lo nas suas virtudes e preceitos, encontraremos muitos que quererão contradizer-nos, muitos que lançarão obstáculos no nosso caminho, e muitos outros que tentarão dissuadir-nos de continuar, e tudo isso até entre aqueles que figuram como nossos companheiros de viagem rumo a Cristo. Devemos lembrar-nos de que, como nos dizem os Evangelhos, aqueles que proibiam os cegos de clamar por Cristo eram gente que caminhava ao lado dEle. Se queremos segui-lo, o melhor que podemos fazer é aceitar como cruzes as censuras, as coisas desagradáveis e todo o tipo de contradições; toleremos tudo, suportemos tudo, e não queiramos chegar logo ao fim. E, ao mesmo tempo, amemos o Único que não decepciona, o Único que não engana; amemo-lo porque é verdade o que promete, mesmo que não no-lo dê imediatamente e a fé ameace titubear. Resistamos, perseveremos, agüentemos, suportemos a demora: tudo isso é levar a nossa cruz. E se de verdade somos cristãos, esperemos tribulações neste mundo, não esperemos por tempos melhores: só nos estaríamos enganando. O que o Evangelho não nos prometeu, não o prometamos a nós mesmos. Quem perseverar com espírito ardente não esfriará na sua caridade; porque dá ouvidos Àquele que não se engana nem engana ninguém; e que nos prometeu a felicidade, não aqui, e sim nEle. E assim, quando tiverem passado todas as coisas desta terra, então poderemos esperar com firmeza que reinaremos com Ele por toda a eternidade

Renúncias, desapego, combate contra as paixões, sofrimentos, tribulações e cruzes ... Não será por causa da insistência nesses temas que muitos consideram a "visão cristã da vida" excessivamente ascética e dura, e dizem e escrevem que sufoca a alegria de viver?

“Os homens toleram de bom grado ser cortados e queimados para evitar o sofrimento de umas dores agudas, não digo já das penas eternas, mas de uma simples ferida um pouco mais grave. Para conseguir uma aposentadoria tranqüila, uma vida lânguida e incerta e de duração muito breve, o soldado - ... - suporta guerras cruéis; vive inquieto talvez durante muitos anos de trabalho, à espera unicamente de poder descansar um pouco. A que tempestades e tormentas não se expõem os mercadores -, só para conseguirem umas riquezas feitas de ar! Que calores, que frios, que precipícios e rios não enfrentam os caçadores, que escassez de comida e bebida, só para capturarem uma besta e satisfazerem assim nãouma necessidade, mas um capricho! Quantos incômodos de noites passadas em branco e de prazeres de que é preciso privar-se não suporta o estudante, não já para aprender a sabedoria, mas pelo dinheiro e pelas honras da vaidade, para aprender a fazer contas, a ler e a mentir com elegância! ... Em todas essas coisas, aqueles que não as amam sofrem com a dureza do que têm de padecer; e os que as amam padecem exatamente o mesmo na aparência, embora não sofram com a sua dureza. Por quê? Porque o amor torna fáceis e praticamente insignificantes todas as coisas duras e atrozes. Se, para evitar a miséria temporal, a ambição enfrenta trabalhos enormes, com quanto mais facilidade e decisão não fará a caridade o mesmo, quando se trata de evitar a miséria eterna e conseguir a paz duradoura!

Com razão diz-nos o Apóstolo Paulo, cheio de uma imensa alegria: Os padecimentos do tempo presente não têm proporção alguma com a glória jutura que se revelará em nós. Já se vê por que dizemos que o jugo de Cristo é suave e a sua carga leve. Se a vida cristã é dificil para os poucos que enveredam por ela, torna-se fácil para os que amam a Deus. Esses caminhos que parecem duros aos que "labutam" - aos que, kantianamente, só enxergam na vida cristã uma série de deveres a cumprir -, são suaves' para os que amam. Por isso, a divina Providência faz com que, o homem interior, que se renova de dia para dia, já não viva sob a Lei, mas sob a graça; libertado - pelo modo como as cumpre - da carga das inúmeras observâncias que constituíam um jugo pesado, mas muito conveniente para domar a sua dura cerviz - o seu orgulho intelectual, diríamos nós -, esse homem respira agora a facilidade de uma fé simples, de uma esperança boa e da santa caridade. Todos os incômodos impostos ao homem exterior tornam-se leves para o homem interior. Nada é tão fácil para uma vontade realmente boa como ser ela mesma, e isso basta para Deus


Que dizer então dessas pessoas, até bondosas, que cifram todo o seu ideal em poupar incomodidades e sofrimentos a si e aos outros? E, quando estão investidas em responsabilidade pelos outros, por serem pais, governantes, sacerdotes, evitam acima de tudo exigir condutas custosas àqueles que lhes estão confiados?

“Essas pessoas são como alguém que, para facilitar a vida dos pássaros, lhes cortasse as asas para aliviá-los do seu peso. Quanto mais peso lhes tirarem, mais presos os deixarão à terra! Porque lhe tiraram o peso, a ave já não voa; devolvam-lho, e voará até às nuvens! Assim é também o peso de Cristo; carreguem-no os homens, não sejam preguiçosos. Não dêem ouvidos aos que não querem arcar com ele; ponham-no aos ombros os que querem, e experimentarão como é leve, como é suave, como é alegre, como os arrebata para o céu, desprendendo-os da terra. Outras são as cargas que oprimem e esmagam; a de Cristo sustenta. Outra é a carga que pesa; a de Cristo é toda asas”

O senhor tocou já várias vezes num tema candente, o do amor. Podemos dizer que, segundo o seu modo de pensar, mais do que uma questão de cumprir umas leis morais, ou de aderir a um sistema de doutrinas, o cristianismo é questão de amor?

“É evidente: o verdadeiro amor consiste em aderír à verdade para viver na justiça. Ninguém desfruta daquilo que conhece se não o ama ... e ninguém persevera no cumprimento daquilo que ama senão com mais amor. Por outro lado, nenhum bem é perfeitamente conhecido se não for perfeitamente amado. Cada um será como for o seu amor. Amamos a terra? Seremos terra. Amamos a Deus? Que vou dizer que seremos Deus? Não ouso dizê-lo por mim mesmo, mas ouçamos a Escritura: Eu digo: deuses sois, e todos filhos do Altíssimo. Quando a alma vive na iniqüidade, está morta. Quando, pelo contrário, se torna justa, torna-se participante de uma outra vida distinta da sua; porque, elevando-se até Deus e unindo-se a Deus pelo amor, é justificada por Ele .


Fonte: Livro: Onde está Meu Deus? Editora quadrante

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