terça-feira, 28 de abril de 2009

Mortificação - Parte III


Prática da Mortificação

Princípios.

1 - A mortificação deve abraçar o homem inteiro, corpo e alma; porque o homem inteiro, se não está bem disciplinado, é que é uma ocasião de pecado. É certo que, falando com rígor, só a vontade é que peca; mas a vontade tem por cúmplices e instrumentos o corpo com os seus sentidos exteriores e a alma com todas as suas faculdades. É, por conseguinte, o homem todo que deve ser disciplinado ou mortificado

2 – A mortificação combate o prazer. É certo que o prazer em si não é um mal; é até um bem, quando se subordina ao fim para que Deus o instituiu.- Ora Deus quis vincular certo prazer ao desempenho do dever, a fim de facilitar o seu cumprimento. Assim, por exemplo, encontramos certo gosto no comer e beber, no trabalho, e noutros deveres deste gênero. Donde se deduz que, no plano divino, o prazer não é um fim senão um meio. Gostar o prazer, com o fim de melhor cumprir o dever, não é pois, proibido; é a ordem estabelecida por Deus. Mas querer o prazer por si mesmo, como fim, sem relacão alguma com o dever, é pelo menos arriscado, pois se corre perigo de escorregar dos prazeres lícitos aos ilícitos. Gozar o parzer, excluindo o dever, é pecado mais ou menos grave, porque é a violação da ordem estabelecida por Deus. A mortificação consistirá; pois, em nos privarmos dos prazeres maus, contrários à ordem providencial, ou à lei de Deus ou da Igreja; em renunciarmos até os prazeres perigosos, para não nos expormos ao pecado; e ainda em nos abstermos de alguns prazeres lícitos, para melhor assegurarmos o império da vontade sobre a sensiblidade

Neste mesmo intuíto, não somente nos privaremos de alguns prazeres, mas até nos infligiremos algumas mortificações positivas; porque é um fato da experiência que não há nada mais eficaz para amortecer a inclinação ao prazer do que impor-se algum trabalho ou sofrimento de super-rogacão.

3 – Mas a mortificação deve-se praticar com prudência ou discrição: deve ser proporcionada às forças físicas e morais de cada um e ao cumprimento dos deveres de estado.

A) É mister poupar as forças físicas, porquanto, segundo São Francisco de Sales, «estamos expostos a grandes tentações em dois estados, a saber, quando o corpo está demasiadamente nutrido, ou excessivaente abatido» é que, efetivamente, neste último caso facilmente se cai em neurastenia, que obriga depois a cuidados perigosos.

B) É preciso poupar as forças morais, isto é, não se impor ao príncípio excessivas prívações que não se poderão continuar por muito tempo e que, no momento em que se deixam, podem conduzir ao relaxamento.

C) Importa sobretudo que estejam em harmonia com os deveres de estado, pois que estes, por obrigatórios, devem prevalecer às obras de super-rogação. Assim, por exemplo, seria mau para uma mãe de família praticar austeridade que a impedissem de cumprir os seus deveres para com o marido e os filhos.

4 - Há uma certa hierarquia nas mortificações:

- as interiores valem, evidentemente, mais que as exteriores, por combaterem mais diretamente a raiz do mal. Mas importa não esquecer que estas facilitam muito a prática daquelas; quem quisesse disciplinar a imaginação, sem mortificar os olhos, não chegaria a grandes resultados, precisamente porque estes fornecem àquela as imagens sensíveis que lhe dão pasto. Foi erro dos modernizantes mofar das austeridades dos séculos cristãos. De fato, os Santos de todas as épocas, tanto os que foram beatificados ou canonizados nestes últimos tempos como os outros, castigaram asperamente o próprio corpo e os sentidos exteriores, bem persuadidos que, no estado de natureza decaída, é o homem todo que deve ser mortificado, para pertencer totalmente a Deus.

Vamos, pois, percorrer sucessivamente todos os gêneros de mortificação, começando pelos exteriores, para chegar aos interiores: é esta a ordem lógica; na prática, porém, é mister saber combinar e dosar uns e outros.

I. Da Mortificação do Corpo e dos Sentidos Externos

1 - Sua razão de ser:

a) Nosso Senhor Jesus Cristo havia recomendado aos seus discípulos a prática moderada do jejum e abstinência, a mortificação da vista e do tato. São Paulo compreendia tão bem a necessidade de mortificar o corpo, que o castigava severamente, para escapar ao pecado e à reprovação; «Castigo corpus meum et in servi tu tem redigo, ne forte, cum aliis praedicaverim, ipse reprobus efficiar». A própria Igreja interveio para prescrever aos fiéis certos dias de jejum e abstinência.

b) Qual é a razão de tudo isto? É indubitável que o corpo, bem disciplinado, é um servidor útil, necessário até, cujas forças importa poupar, para as colocar ao serviço da alma. No estado, porém, de natureza decaída, o corpo busca gozos sensuais, sem fazer caso do que é permitido ou vedado; tem até inclinação especial para os prazeres ilícitos e muitas vezes se revolta contra as faculdades superiores que lhos querem interdizer. Inimigo perigosíssimo, porque nos acompanha por toda a parte, à mesa, no leito, nas jornadas, e muitas vezes até encontra cúmplices, dispostos a excitar-lhe a sensualidade e luxúria. É que, na verdade, os seus sentidos são outras tantas portas abertas, pelas quais sorrateiramente se insinua o sutil veneno do prazer vedado. É, pois, absolutamente necessário velar sobre ele, dominá-lo, reduzi-lo à servidão; senão, ver-nos-emos atraiçoados por ele.

2 - Modéstia do corpo.

Para mortificar o corpo, comecemos por observar perfeitamente as regras da modéstia e urbanidade; nisto se encontra abundante matéria de mortificação. O princípio, que nos deve servir de regra, é o de São Paulo: «Não sabeis que os vossos corpos são membros de Santo que reside em vós? Nescitis quoniam CaIpora vestra membra sunt Christi? ... Membra vestra templum sunt Spiritus Sancti» .

A) É mister, pois, respeitar o nosso corpo como um templo santo, como um membro de Cristo. Nada desses trajes mais ou menos indecentes que não são feitos senão para provocar a curiosidade e a volúpia. Cada qual traga o vestido reclamado pela sua condição, simples e modesto, mas sempre asseado e decente. Nada mais ponderado que os conselhos de São Francisco de Sales a este propósito «Sede asseada, Filotea, e nada haja em vós destoante e mal posto ... mas fugi o mais possível das vaidades e afetações, das curiosidades e loucuras. Propendei sempre, quando for possível, para a parte da singeleza e modéstia, que sem dúvida é o maior adorno da formosura e a melhor desculpa da fealdade ... As mulheres vãs fazem duvidar da sua castidade; pelo menos, se a têm, não transparece entre tantas superfluidades e bagatelas» ... São Luís diz numa palavra, «que cada qual se deve vestir conforme seu estado, de sorte que as pessoas sisudas e os homens de bem não possam dizer: é de mais; nem os jovens: é de menos».Quanto aos religiosos e religiosas, bem como aos eclesiásticos, todos estes têm sobre a forma e matéria dos vestidos regras a que se devem conformar. É inútil dizer que o mundanismo e afetação estariam completamente deslocados entre eles e não poderiam deixar de escandalizar os próprios mundanos.

B) A compostura do porte exterior é igualmente uma excelente mortificação ao alcance de todos. Evitar com cuidado as posições moles e efeminadas, conservar o corpo direito sem violência e afetação, nem curvado, nem inclinado para um lado ou outro; não mudar com demasiada frequência de posição; não cruzar nem os pés nem as pernas; não se apoiar indolentemente na cadeira ou sobre o genuflexório; evitar os movimentos bruscos e os gestos desordenados: eis aqui, entre centenas de outros, meios de nos mortificarmos sem perigo para a saúde, sem atrair as atenções, os quais nos dão sobre o próprio corpo grandíssimo domínio.

C) Há outras mortificações positivas que os penitentes generosos se comprazem em se impor a si mesmos, para macerarem o corpo, acalmarem os seus ardores intempestivos e estimularem o desejo da piedade: os mais comuns são os pequenos cilícios de ferro com que se apertam os braços, as cadeias com que se cingem os rins, as cinturas ou escapulários de crina, e alguns bons golpes de disciplina, quando é possível torná-la, sem atrair atenções. (Voltar às práticas de mortificação corporal é um dos meios mais eficazes para recuperar a alegria e, com ela, a fervor; “Voltemos às nossas mortificações corporais, maceremos a nossa carne, façamos correr algumas gotas do nosso sangue, e seremos felizes como nunca. Se o espírito das Santas respira a alegria. se os monges e os religiosas são criaturas animadas dessa franca jovialidade que o mundo não sabe explicar, é unicamente porque os seus corpos, como o de S. Paulo, são castigados e reduzidos à servidão com inflexível severidade». -FABER, Saint Sacrement, t. 1, p. 228,229). Em tudo isto, é mister consultar com todo o cuidado o parecer do próprio diretor, evitar tudo o que porventura cheirasse a singularidade ou lisonjeasse a vaidade, sem falar do que pudesse ser contrário à higiene ou à limpeza; o diretor não permitirá estas coisas senão com muita discrição, e somente por algum tempo, para experiência; caso note inconveniente de qualquer gênero, é suprimi-las imediatamente.

3 - Modéstia dos olhos.

A) Há olhares gravemente culpados, que ofendem não somente o pudor, mas até a castidade em si mesma e que, por conseguinte, é forçoso evitar. Outros há que são perigosos, por exemplo, fixar a vista sem razão em pessoas ou objetos que naturalmente hão de suscitar tentações. Assim, a Sagrada Escritura nos adverte que não detenhamos o olhar numa donzela, não seja caso que a sua formosura seja para nós objeto de escãndalo: «Virginem ne conspicias, ne forte scandalizeris in decore illius». E hoje, então, que a licença das vitrinas, a imodéstia do trajar e a imoralidade das exibições teatrais e de certos salões criam tantos perigos, que recato não é preciso para evitar o pecado?

B) É por isso que o cristão sincero, que quer salvar a sua alma, custe o que custar, vai mais longe; para estar seguro de não sucumbir à sensualidade, mortifica a curiosidade dos olhos, evitando, por exemplo, olhar pela janela, para ver quem passa, conservando os olhos modestamente baixos, sem afetação, nas viagens ou passeios. Pelo contrário, compraz-se em os descansar sobre algum objeto, imagem piedosa, campanário, cruz, estátua, para se excitar ao amor de Deus e dos Santos.

4 - Mortificação do ouvido e da língua.

A) Esta mortificação exige que não se diga nem ouça nada contrário à caridade, à pureza, à humildade e às demais virtudes cristãs; porquanto, como diz São Paulo, as conversas más corrompem os bons costumes, «corrumpunt mores bonos colloquia prava». E quantas almas, na verdade, não têm sido pervertidas por terem escutado conversas desonestas ou contrárias à caridade?! As palavras lúbricas excitam a curiosidade mórbida, revoltam as paixões, inflamam desejos e provocam ao pecado. As palavras pouco caritativas suscitam divisões até nas famílias, desconfianças, inimizades, rancores. É necessário, pois, velar sobre as mínimas palavras, para evitar tais escãndalos, e saber fechar os ouvidos a tudo quanto possa pertubar a pureza, a caridade e a paz.

B) Mas, para melhor conseguirmos este fim mortificaremos, de vez em quando, a curiosidade, evitando fazer perguntas acerca do que a possa lisonjear, ou reprimindo esse prurido de falar que arrasta a conversas não somente inúteis, mas até perigosas: «in multiloquio non deerit peccatum»

C) E, como os meios negativos não bastam, havemos de ter cuidado de dirigir a conversa para assuntos não somente inofensivos, mas até bons, honestos e, de vez em quando, edificantes, sem contudo nos tornarmos pesados aos outros com observações demasiado sérias que não venham naturalmente.

5 - Mortificação dos outros sentidos.

O que dissemos da vista, do ouvido e da língua, aplica-se aos outros sentidos; voltaremos a tratar do gosto, ao falar da gula, e do tato a propósito da castidade. Quanto ao olfato baste dizer que o uso imoderado de perfumes não é muitas vezes mais que um pretexto para satisfazer a sensualidade e talvez para excitar a luxúria. Um cristão sério não usa de perfumes senão com muita moderação, por motivos de grande utilidade; os religiosos e eclesiásticos devem ter como norma não usar nunca deles.

II - Da mortificação dos Sentidos Internos

Os dois sentidos internos, que é preciso mortificar, são a imaginação e a memória, que geralmente atuam de harmonia, pois que o trabalho da memória é acompanhado de imagens sensíveis.

1 - Princípio.

São duas faculdades preciosas, que não somente fornecem à inteligência os materiais de que esta necessita para trabalhar, senão que lhe permitem expor a verdade com imagens e fatos que a tornam mais perceptível, mais viva e, por isso mesmo, mais interessante: um resumo pálido e frio não teria encantos para o comum dos mortais. Não se trata, pois, de atrofiar estas faculdades, senão de as disciplinar e subordinar a sua atividade ao império da razão e da vontade; aliás, deixadas a si mesmas, povoam a alma dum sem-número de lembranças e imagens que a dissipam, desperdiçam as suas energias, fazem-lhe perder tempo precioso na oração e no trabalho, e criam mil tentações contra a pureza, caridade, humildade e demais virtudes. É, pois, necessário discipliná-las e pô-las ao serviço das faculdades superiores.

2 - Regras que se devem seguir.

A) Para reprimir os extravios da memória e da imaginação, aplicar-nos-emos, antes de mais nada, a afugentar implacavelmente, desde o princípio, isto é, logo que a consciência nos adverte, as imagens ou lembranças perigosas que, recordando-nos um passado escabroso, ou transportando-nos no meio das seduções do presente ou do futuro, seriam para nós uma fonte de tentações. Mas, como há muitas vezes uma espécie de determinismo psicológico, que nos faz passar por devaneios fúteis aos perigos, premunir-nos-emos contra esta engrenagem, mortificando os pensamentos inúteis, que já nos fazem perder tempo precioso, e preparam o caminho a outros mais perigosos ainda: a mortificação dos pensamentos inúteis, dizem os Santos, é a morte dos pensamentos maus.

B) Para melhor se vir a este resultado, o meio positivo mais conducente, é aplicar inteiramente a alma toda ao dever presente, aos nossos trabalhos, estudos e ocupações habituais. É, afinal, o melhar meio de conseguir fazer bem o que se faz, concentrando toda a atividade na ação presente: age quod agis. - Lembrem-se os jovens que, para progredirem nos estudos, como nos demais deveres do próprio estado, é mister dar mais lugar ao trabalho da inteligência e da reflexão, e menos às faculdades sensíveis: deste modo assegurarão o futuro e evitarão os devaneios perigosos.

C) É utilíssimo, enfim, servir-se da imaginação e da memória, para alimentar a piedade, buscando nos Livros Santos, nas orações litúrgicas e nos autores espirituais os mais belos textos, as mais formasas comparações e imagens; utilizar a imaginação para andar na presença de Deus, e representar-se por miúdo os mistérios de Cristo Senhor Nosso e da Santíssima Virgem. E assim, em lugar de atrofiarmas a imaginação, a povoaremos de piedosas representaçoes que desterrarão as que poderiam ser perigosas e nos porão em condições de melhor compreender e explicar aos nossos ouvintes as cenas evangélicas.

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