sexta-feira, 24 de abril de 2009

Mortificação - Parte II


1. Da parte de Deus

A - O fim da mortificação, como dissemos, é unir-nos com Deus.

Ora, é impossível conseguir essa união, sem nos desprendermos do amor desordenado das criaturas. Como diz com razão São João da Cruz, «a alma apegada à criatura torna-se semelhante a ela; quanto mais cresce a afeição, tanto mais se afirma entre a identidade, já que o amor estabelece uma relação de igualdade entre o que ama e o que é amado ... Portanto, quem ama uma criatura, abate-se ao seu nível, e até mais abaixo, porque o amor não se contenta de nivelar, senão que estabelece uma certa escravidão. É por este motivo que uma alma, escrava dum objeto fora de Deus, se torna incapaz de pura união e transformação em Deus, porque a baixeza da criatura é mais distante da soberania do Criador que as trevas da luz».

Ora a alma, que se não mortifica, não tarda em apegar-se desordenadamente às criaturas. Após a queda original, sente-se atraída para elas, cativada pelos seus encantos, e, em lugar de se servir delas como de degraus para subir ao Criador, compraz-se nelas, considerando-as como um fim. Para quebrar este encanto, é absolutamente necessário desapegar-se de tudo o que não é Deus, ou ao menos, de tudo que não é encarado como meio de subir para Deus. Eis o motivo por que M. Olier, comparando a condição dos cristãos com a de Adão inocente, diz que há uma grande diferença entre ambos; « Adão buscava a Deus, servia-o e adorava-o nas sua criaturas; os cristãos, pelo contrário, são obrigados a buscar a Deus pela fé, a servi-lo, a adorá-lo retirado em si mesmo e na sua santidade, separado de toda a criatura». É nisto que consiste a graça do Batismo

B - No dia do nosso Batismo firmou-se entre Deus e nós um verdadeiro contrato.

a) Do seu lado, purificou-nos Deus da mácula original e adotou-nos por filhos, comunicou-nos uma participação da Sua vida e empenhou-se a dar-nos todas as graças necessárias para a conservar e acrescentar. E bem sabemos nós com que liberalidade cumpriu Deus as suas promessas.

b) Do nosso lado, comprometemo-nos a viver como verdadeiros filhos de Deus, a aproximar-nos da perfeição do nosso Pai Celeste, cultivando essa vida sobrenatural. Ora, tudo isso é impossível sem prática da mortificação. Porquanto, duma parte, o Espírito Santo, que nos foi dado no Batismo, “os leva a buscar o desprezo, a pobreza, os sofrimentos, e por outra, a nossa carne deseja a honra, o prazer, as riquezas» Há, pois, em nós um conflito, uma luta incessante; nem podemos ser fiéis a Deus, sem renunciarmos amor desordenado da honra, do prazer e das riquezas. É por isso que o sacerdote, ao administrar-nos o Batismo, traça duas cruzes sobre nós, uma sobre o coração, para imprimir em nós o amor da cruz, outra sobre os ombros, para nos dar a força de a levar.

Faltaríamos, pois, às promessas do nosso batismo, se não carregássemos com a nossa cruz, combatendo o desejo da honra com a humildade, o amor do prazer com a mortificação, a sede das riquezas com a pobreza.

2 – Da parte de Jesus Cristo

A) Somos-lhe incorporados pelo Batismo, e, como tais, devemos receber D’ele o movimento e as inspirações, e, por conseguinte, conformar-nos com Ele. Ora, como diz a Imitação, a sua vida inteira não foi senão longo martírio: «Tota vita Christi crux fuit et martyrium». A nossa, por conseguinte, não pode ser vida de prazer e honras, senão vida mortificada. É afinal o que nos diz claramente o nosso divino Chefe: «Si quis vult post me venire, abneget semetipsum, et tollat crucem suam quotidie et sequatur me”. Pois, se há alguém que deva seguir a Jesus, é seguramente aquele que tende à perfeição. Ora, como seguir a Jesus que, desde a entrada no mundo abraçou a cruz, que toda a sua vida suspirou pelo sofrimento e humilhação, que desposou a pobreza no presépio e a teve por companheira até o Calvário, se amamos o prazer, as honras, as riquezas, se não levamos a nossa cruz de cada dia, a que o próprio Deus nos escolhe e envia? É uma vergonha, exclama São Ber;nrdo, que debaixo duma cabeça coroada de espinhos, sejamos membros delicados, com temor dos menores sofrimentos: «pudeat sub spinato capite membrum fieri delicatum». Para sermos, pois, conformes a Jesus Cristo e nos aproximarmos da sua perfeição, é necessário levar a nossa cruz com Ele.

B) Se aspiramos ao apostolado, aí temos novo motivo para crucificar a carne. Foi pela cruz que Jesus Cristo salvou o mundo; será, pois, pela cruz que havemos de colaborar com Ele na salvação de nossos irmãos, e o nosso zelo será tanto mais fecundo quanto maior for a parte que tivermos nos sofrimentos do Salvador. Era este, seguramente, o motivo que animava São Paulo, quando completava em sua carne a paixão do divino Mestre, a fim de obter graças para a Igreja. É isto que sustentou no passado e sustenta ainda no presente tantas almas que se oferecem com vítimas, para ser Deus glorificado e as almas salvas.

É áspero, sem dúvida, o sofrimento, mas, ao contemplarmos Jesus caminhando diante de nós com a cruz aos ombros, para nos salvar a nós e aos nossos irmãos, ao vermos a Sua agonia, a Sua condenação injustíssima, a flagelação, a coroação de espinhos, a crucifixão, ao ouvirmos as mofas, os insultos, as calúnias, que Ele aceita em silêncio, como ousaremos queixar-nos? Ainda nao chegamos a derramar o sangue: «nondum usque ad guinem restitistis». E se estimamos no seu justo valor a nossa alma e a de nossos irmãos, não valerá a pena suportar alguns sofrimentos passageiros por uma glória que jamais findará, e para cooperar com Cristo Senhor Nosso na salvação dessas almas, pelas quais Ele derramou até à última gota, o Seu sangue? Estes motivos, por mais elevados que sejam, são compreendidos por algumas almas generosas, logo desde o começo da sua conversão; propor-lhos, é adiantar a obra da sua purificação e santificação.

3 - Da parte da nossa Santificação

A) Necessitamos de assegurar a perseverança, ora, a mortificação é, sem dúvida alguma, um dos melhores meios de preservação do pecado. O que nos faz sucumbir à tentação é o amor do prazer ou o horror da pena, da luta, horror difficultatis, labor certaminis. Ora, a mortificação combate esta dupla tendência, que em realidade é uma só.

Desquitando-nos de alguns prazeres legítimos, a mortificação arma-nos a vontade contra os prazeres ilícitos, tornando-nos fácil a vitória sobre a sensualidade e o amor próprio, «agendo contra suam propriam sensualitatem et contra suum amorem carnalem et mundanum», com diz com razão Santo Inácio. Se, pelo contrário, capitulamos diante do prazer, concedendo-nos todas as alegrias permitidas, como saberemos resistir no momento em que a sensualidade, ávida de novos gozos, perigosos ou ilícitos se sente como arrastada pelo hábito de ceder às suas exigências? A ladeira é tão escorregadia, em matéria de sensualidade sobretudo é tal a fascinacão da vertigem, que nao há nada mais fácil que resvalar ao abismo. Até mesmo tratando-se de orgulho, o declive é mais rápido que se Imagina: mente-se, por exemplo, em matéria leve, para dar uma desculpa e evitar assim uma humilhação; e depois, no sagrado tribunal, corre-se perigo de faltar à sinceridade por medo duma confissão humilhante. A própria segurança exige, pois, a luta contra o amor próprio tanto como contra a sensualidade e a cobiça.

B) Não basta evitar o pecado é mister avançar na perfeição. Ora, qual é ainda aqui o grandíssimo obstáculo, senão o amor do prazer e o horror da cruz? Quantos desejariam ser melhores, tender à santidade, se não fosse o temor do esforço necessário para adiantar e das provações que Deus envia aos seus melhores amigos? É necessário, pois, recordar-lhes o que São Paulo tantas vezes repetia aos primeiros cristãos, a saber, que a vida é um combate, que devemos ter vergonha de ser menos corajosos que os que lutam por uma recompensa terrestre, e, para se prepararem para a vitória, se privam de muitos prazeres lícitos e se impõem duros e penosos exercícios, e tudo isso por uma coroa perecedoura , enquanto a coroa, que nos está prometida, é imortal, «et íllí quidem ut corruptibilem coronam a ccipiant, nos autem íncorruptam» - Temos medo do sofrimento; mas já sabemos das terríveis penas do Purgatório que teremos de padecer durante longos anos, se quisermos viver na imortificação e conceder-nos todos os prazeres que nos lisonjeiam? Quanto mais prudentes não são os homens do século?! Quantos se não impõem ásperos trabalhos, e quantas vezes se não sujeitam a passos humilhantes, para ganharem um pouco de dinheiro e assegurarem uma aposentação honrosa! E nós não havíamos de nos dar à mortificação, para assegurar uma aposentação eterna na cidade do céu? É isto razoável?

É, pois, necessário convencermo-nos de que não há perfeição nem virtude possível sem mortificação. Como ser casto, sem mortificar essa sensualidade que nos inclina tão fortemente aos prazeres perigosos e perversos. Como guardar a temperança, senão reprimindo a gula? Como praticar a pobreza ou até mesmo a justiça, sem combater a cobiça? Como ser humilde, manso e caritativo, sem dominar essas paixões de orgulho, de cólera, de inveja e de ciúme que dormitam no fundo de todo o coração humano? Não há uma só virtude que, no estado de natureza decaída, se possa praticar muito tempo sem esforço, sem luta e, por conseguinte, sem mortificação, Pode-se, pois, dizer com M. Tronson, que «assim como a imortificação é a origem dos vícios e a causa de todos os males, assim a mortificação é o fundamento das virtudes e a fonte de todos os bens».


C) Pode-se até acrescentar que a mortificação, apesar de todas as privações e sofrimentos que impõe, é, ainda mesmo neste mundo, a fonte dos maiores bens, e que, afinal, os cristãos mortificados são em geral mais felizes que os mundanos que se entregam a todos os prazeres. É o que ensina o próprio Cristo Senhor Nosso, ao dizer-nos que os que deixam tudo, para o seguirem, recebem em retorno cento por um ainda mesmo nesta vida: «Qui relíquerít domum vel fratres ... centuplum accipiet, et vitam aeternam possídebit» São Paulo não se exprime diversamente, quando, depois de haver falado da modéstia, isto é, da moderação em todas as coisas, acrescenta que quem a pratica goza daquela paz verdadeira que supera toda a consolação: «pax Dei, quae exsuperat omnem sensum, custodiat corda vestra et intellígentías vestras». E não é ele mesmo um vivo exemplo disto? Oh! Quanto não teve ele que sofrer! que provações terríveis, porque houve de passar na pregação do Evangelho, bem como na luta contra si mesmo, descreve-no-las ele longamente; mas acrescenta que abunda e superabunda de alegria no meio das suas tribulações: superabundo gaudio in omni tribulatione nostra .

O mesmo se diga de todos os demais Santos: é certo que houveram de passar igualmente por longas e dolorosas tribulações: mas os mártires, no meio das suas torturas, diziam que jamais haviam estado em semelhante festim, ”Nunquam tam iucunde epulati sumus». Ao ler as vidas dos Santos, duas coisas nos espantam; as terríveis provações que padeceram, as mortificações que livremente se impuseram a si mesmos; e, por outro lado, a paciência, a alegria, a serenidade no meio destes sofrimentos. E assim, chegam a amar a cruz, a cessar de a temer, a suspirar até por ela, a contar como perdidos os dias em que não tiveram quase nada que sofrer. É este um fenômeno psicológico que assombra os mundanos, mas que consola as almas de boa vontade.É certo que se não pode exigir a principiantes este amor da cruz; pode-se, porém, alegando os exemplos dos Santos, fazer - lhes compreender que o amor de Deus e das almas adoça consideravelmente o sofrímento e a mortificação, e que, se eles se resolverem a entrar generosamente na prática dos pequenos sacrifícios, que estão ao seu alcance chegarão um dia também a amar, a desejar a cruz, e a encontrar nela verdadeiras consolações espirituais.

É precisamente o que observa o autor da Imitação de Cristo, num texto que resume perfeitamente as utilidades da mortificação: «In cruce salus, in cruce vita, in cruce protectio ab hostibus, in cruce infusio supernae suavitatis, in cruce robur mentis, in cruce gaudium spiritus, in cruce virtutis summa, in cruce perfectio sanctitatis». O amor da cruz é efetivamente o amor de Deus levado até à imolação; ora este amor, como já dissemos, é indubitavelmente o compêndio de todas as virtudes, a própria essência da perfeição, e por isso mesmo o escudo mais poderoso contra os nossos inimigos espirituais, uma fonte de força e consolação, o melhor meio de aumentar em nós a vida espiritual e assegurar a salvação.

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