" Tomemos a complicada questão da caridade, que alguns racionalistas extremamente impiedosos julgam ser bastante fácil.
A caridade é um paradoxo, como a modéstia e a coragem. Grosseiramente falando, a caridade significa uma dessas duas coisas: perdoar atos imperdoáveis ou amar pessoas que não são dignas de amor.
Mas, se perguntarmos a nós mesmos (como no caso do orgulho) o que é que um pagão sensato pensaria sobre tal assunto, começaremos, provavelmente, a estuda-lo pela base. Um pagão sensato diria que existem pessoas a quem devemos perdoar e outras a quem não devemos perdoar. De um escravo que roubou vinho, podia-se zombar, mas um escravo que traiu seu benfeitor devia ser morto e mesmo depois de morto, devia ser amaldiçoado.
Até o ponto em que o ato era perdoável, o homem era perdoável. Isso também é racional e, até, reconfortante; mas trata-se, ainda, de uma dissolução. Num caso destes, não há lugar para o puro horror pela injustiça, nem se deixa ver a grande beleza que existe na inocência. Desaparece a simples ternura para com os homens na sua qualidade de homens, na qual consiste, afinal, todo o fascínio da caridade.
E, mais uma vez, apareceu o Cristianismo.
Chegou, impetuosamente, com sua espada, e separou uma coisa da outra. Separou o crime do criminoso. Ao criminoso devemos perdoar até "setenta e sete vezes". Ao crime, não devemos perdoa-lo de forma alguma. Não era suficiente que os escravos que roubassem vinho despertassem, em parte, a ira e em parte a compaixão. Devíamos ser muito mais austeros para com o roubo do que tínhamos sido anteriormente, e muito mais compassivos para com o ladrão do que nos mostráramos até então.
Havia espaço para que a ira e o amor se tornassem violentos.
E, quanto mais eu observava o Cristianismo, mais verificava que ele tinha estabelecido uma regra e uma ordem, e que o principal objetivo dessa ordem era possibilitar que as coisas boas se manifestassem com maior ímpeto.
Ortodoxia – Os paradoxos do Cristianismo – pag 127
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