"Alguns temas fundamentais da fé, infelizmente poucas vezes são mencionados na nossa pregação. Na Encíclica Spe salvi eu quis falar também do juízo final, do juízo em geral, e neste contexto também do purgatório, do inferno e do paraíso.
Penso que todos nós ainda estamos influenciados pela objecção dos marxistas, segundo os quais os cristãos só falaram do além e descuidaram a terra. Assim, nós queremos demonstrar que nos empenhamos realmente pela terra e não somos pessoas que falam de realidades distantes, que não ajudam a terra.
Mas, mesmo sendo justo que os cristãos trabalhem pela terra e todos nós somos chamados a trabalhar para que esta terra seja realmente uma cidade para Deus e de Deus não devemos esquecer a outra dimensão. Se não a considerarmos, não trabalhamos bem pela terra. Mostrar isto foi para mim uma das finalidades fundamentais ao escrever a Encíclica.
Quando não se conhece o juízo de Deus, não se conhece a possibilidade do inferno, da falência radical e definitiva da vida, não se conhece a possibilidade e a necessidade da purificação. Então o homem não trabalha bem pela terra porque no final perde os critérios, já não se conhece a si mesmo, porque não conhece Deus, e destrói a terra.
Todas as grandes ideologias prometeram: nós dominaremos a situação, não descuidaremos a terra, criaremos um mundo novo, justo, correcto, fraterno. Ao contrário, destruíram o mundo. Vemo-lo com o nazismo, e também com o comunismo, que prometeram construir um mundo tal como deveria ser e, ao contrário, destruíram o mundo.
Nas visitas ad Limina dos Bispos de países ex-comunistas, vejo sempre de novo como naquelas terras foram destruídos não só o planeta, a ecologia, mas sobretudo e mais gravemente, as almas. Reencontrar a consciência verdadeiramente humana, iluminada pela presença de Deus, é o primeiro trabalho de reedificação da terra. É esta a experiência comum daqueles países. A reedificação da terra, respeitando o brado de sofrimento deste planeta, só se pode realizar reencontrando Deus na alma, com os olhos abertos para Deus.
Por isso, devemos falar de tudo isto precisamente por responsabilidade para com a terra, para com os homens que vivem hoje. Devemos falar também do pecado como possibilidade de destruir a si mesmos e também outras partes da terra.
Na Encíclica procurei demonstrar que precisamente o juízo último de Deus garante a justiça. Todos queremos um mundo justo. Mas não podemos reparar todas as destruições do passado, todas as pessoas injustamente atormentadas e assassinadas. Só o próprio Deus pode criar a justiça, que deve ser justiça para todos, também para os mortos.
E como diz Adorno, um grande marxista, só a ressurreição da carne, que ele considera irreal, poderia criar justiça. Nós cremos nesta ressurreição da carne, na qual nem todos serão iguais.
Hoje estamos habituados a pensar: o que é o pecado, Deus é grande, conhece-nos, portanto o pecado não conta, no fim Deus será bom com todos. É uma bela esperança. Mas existe a justiça e a verdadeira culpa.
Quantos destruíram o homem e a terra não podem sentar-se imediatamente à mesa de Deus juntamente com as suas vítimas. Deus cria justiça. Devemos ter isto em conta. Por isso parecia-me importante escrever este texto também sobre o purgatório, que para mim é uma verdade tão óbvia, tão evidente e também necessária e confortadora, que não pode faltar.
Procurei dizer: talvez não sejam tantos os que se destruíram assim, que são incuráveis para sempre, que já não tem mais elemento algum sobre o qual se possa basear o amor de Deus, não têm mais em si mesmos um mínimo de capacidade de amar. Isto seria o inferno.
Por outro lado, são certamente poucos ou contudo não demasiados os que são tão puros que podem entrar imediatamente na comunhão de Deus.
Muitíssimos de nós esperam que haja algo curável em nós, que haja uma vontade final de servir Deus e de servir os homens, de viver segundo Deus. Mas existem tantíssimas feridas, tanta impureza. Temos necessidade de ser preparados, de ser purificados. É esta a nossa esperança: mesmo com tanta sujidade na nossa alma, no final o Senhor dá-nos a possibilidade, lava-nos com a sua bondade que vem da cruz. Torna-nos assim capazes de ser eternamente para Ele.
E assim o paraíso é a esperança, é a justiça finalmente realizada.
E dá-nos também os critérios para viver, para que este tempo seja de algum modo paraíso, seja uma primeira luz do paraíso. Onde os homens vivem segundo estes critérios, aparece um pouco de paraíso no mundo, e isto é visível. Parece-me também uma demonstração da verdade da fé, da necessidade de seguir o caminho dos mandamentos, do qual devemos falar mais. Estes são realmente indicadores de caminho e mostram-nos como viver bem, como escolher a vida.
Por isso devemos falar também do pecado e do sacramento do perdão e da reconciliação. Um homem sincero sabe que é culpado, que deveria recomeçar, que deveria ser purificado. E esta é a realidade maravilhosa que o Senhor nos oferece: há uma possibilidade de renovação, de ser novos. O Senhor começa connosco de novo e nós podemos recomeçar assim também com os outros na nossa vida.
Este aspecto da renovação, da restituição do nosso ser depois de tantas coisas erradas, depois de tantos pecados, é a grande promessa, o grande dom que a Igreja oferece. E que, por exemplo, a psicoterapia não pode oferecer. A psicoterapia está hoje tão difundida e é também necessária face a tantas psiques destruídas ou gravemente feridas. Mas as possibilidades da psicoterapia são muito limitadas: só pode procurar equilibrar um pouco uma alma desequilibrada. Mas não pode dar uma verdadeira renovação, uma superação destas graves doenças da alma. E por isso permanece sempre provisória e nunca definitiva.
O sacramento da penitência dá-nos a ocasião de nos renovarmos profundamente com o poder de Deus ego te absolvo que é possível porque Cristo assumiu sobre si estes pecados, estas culpas. Parece-me que hoje esta é uma grande necessidade. Podemos ser curados. As almas que estão feridas e doentes, como é a experiência de todos, têm necessidade não só de conselhos mas de uma verdadeira renovação, que só pode vir do poder de Deus, do poder do Amor crucificado. Este parece-me um grande nexo dos mistérios que no final incidem realmente na nossa vida. Devemos nós próprios meditá-los de novo e desta forma fazê-los chegar ao nosso povo.
Papa Bento XVI ao clero da Diocese de Roma
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