segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Lembranças de Minha Vida


Por Bento XVI

Primeira parte: Aqui

Segunda parte: Aqui

( Casa onde nasceu Bento XVI)

"Não se comungava tão frequentemente como hoje, mas havia datas marcadas para que todos recebessem os sacramentos, e a isso dificilmente alguém se subtraía; quem não pudesse mostrar sua ficha de confissão pascal era considerado um paria.

Quando hoje se diz que tudo isso era muito formal e superficial, reconheço de bom grado que, sem dúvida, não poucas pessoas agiam mais por coação social do que por convicção interna. Todavia, não deixava de ter valor que na Páscoa também os fazendeiros, que a bem dizer eram grandes proprietários, tivessem que se ajoelhar no confessionário e acusar-se como pecadores, exatamente como seus empregados e empregadas, que naquele tempo ainda eram numerosos. Esse momento de auto humilhação, em que todas as distinções de classe caíam, certamente não era totalmente sem efeito.

O ano litúrgico imprimia seu ritmo ao tempo, e desde criança, aliás especialmente como criança, senti isso com muita gratidão e alegria. No Advento, as missas em honra dos anjos eram celebradas muito festivamente, de manhã cedinho, em uma igreja escura, iluminada apenas por velas. A alegre expectativa do Natal dava àqueles dias escuros um caráter todo especial. Todos os anos nosso presépio ganhava mais algumas figuras, e era sempre uma alegria especial buscar no mato, com nosso pai, o musgo, o zimbro e os galhos de pinheiro.

Nas quintas-feiras da Quaresma realizavam-se as comemorações do Monte das Oliveiras; sua seriedade e confiante esperança sempre me penetravam profundamente na alma. Especialmente impressionante era, depois, na noite do Sábado Santo, a celebração da ressurreição.

Durante toda a Semana Santa, cortinas pretas cobriam as janelas da igreja, deixando todo aquele espaço, também durante o dia, em uma misteriosa penumbra. Quando o vigário cantava as palavras: “Cristo ressuscitou”, as cortinas de repente eram recolhidas e uma luz radiante fluía pelo espaço. Era a mais impressionante representação da ressurreição do Senhor de que posso me lembrar.

O movimento litúrgico, que naquele tempo chegou a seu auge, não deixou de atingir também nossa aldeia. O pároco começou a organizar missas comunitárias para a meninada da escola; os textos da missa eram lidos do “Schott”, e todos juntos rezavam as respostas.

O que era o “Schott”?

No fim do século XIX, Anselm Schott, um beneditino de Beuron, tinha traduzido o missal para o alemão. Havia edições com o texto apenas em alemão; outras em que somente alguns trechos estavam impressos em latim e em alemão; e outras que traziam todo o texto em latim, com a tradução alemã ao lado.  Um vigário progressista deu o “Schott” de presente a meus pais no dia de seu casamento, em 1920; assim, esse livro de orações esteve presente em nossa família desde o começo.

Nossos pais ajudaram-nos desde cedo a nos familiarizar com a liturgia: havia um livro de orações para crianças que se apoiava no missal, e no qual os momentos sucessivos do ato sagrado eram representados por imagens, de sorte que era fácil acompanhar o que estava acontecendo.

Ao lado havia sempre uma oração em que o essencial das diversas fases da liturgia estava resumido e acessível para a oração de uma criança.  Algum tempo depois, ganhei um “Schott” para crianças, no qual os textos essenciais da liturgia já estavam impressos; em seguida, o “Schott” dominical, em que a liturgia dos domingos e dias de festa já estava completamente reproduzida; finalmente, o missal completo para todos os dias.

Cada novo degrau no acesso à liturgia era, para mim, um grande acontecimento.  Cada livro novo me era uma preciosidade, e eu não podia sonhar com nada mais lindo.   Foi para mim uma aventura cativante esse lento acesso ao misterioso mundo da liturgia, que lá no altar, diante de nós, se realizava.

Tornou-se cada vez mais claro para mim que eu me encontrava aí diante de uma realidade que não foi inventada por uma pessoa qualquer, e não havia sido criada por uma autoridade ou grande personagem. Essa misteriosa fusão de textos e ações tinha nascido da fé da Igreja, através dos séculos.

. Carregava dentro de si o peso de toda a história, mas era, ao mesmo tempo, muito mais do que um produto da história humana.  Cada século tinha contribuído com seus vestígios. As introduções nos ensinavam o que tinha vindo da Igreja primitiva, da Idade Média, dos tempos modernos.

Nem tudo era lógico.Tudo era bastante complicado; nem sempre era fácil a gente se orientar. Mas exatamente por isso aquela estrutura era maravilhosa, e nos sentíamos em casa.

Como criança, eu naturalmente não percebi tudo isso em detalhe, mas meu caminho com a liturgia foi um processo contínuo de crescimento, penetrando numa grandiosa realidade, que supera todas as individualidades e gerações, o que me levava a sempre renovadas surpresas e descobertas.

A inesgotável realidade da liturgia católica acompanhou-me em todas as fases de minha vida; por isso, não posso deixar de voltar continuamente a esse assunto.



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