segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Lembranças de Minha Vida


Por Bento XVI

Primeira Parte Aqui




Parte II

"Tínhamos chegado em dezembro de 1932. Em janeiro de 1933, Hindenburgo entregou a Hitler a função de chanceler do Reich, o que na linguagem do partido logo foi chamado de “tomada do poder” – o que de fato foi. Exerceu-se poder desde o primeiro momento.

Pessoalmente, não me lembro daquele dia chuvoso, mas meus irmãos me contaram que a escola foi obrigada a fazer uma passeata pela aldeia, que acabou sendo uma volta trivial, que não deixou muito entusiasmo.

Em todo caso, também na aldeia já tinham havido nazistas, abertamente ou em segredo, que agora achavam que sua hora havia chegado, e, de repente, para susto de muitos, tiravam seus uniformes marrons dos baús.

A “Hitlerjugend” [Juventude hitleriana] e a “Bund deustscher Madchen” [Liga de meninas alemãs] foram introduzidas e ligadas à escola, de sorte que também minha irmã e meu irmão tiveram de participar de suas atividades. Meu pai sofria muito por estar a serviço, agora, de um poder estatal cujos detentores ele considerava criminosos, embora o serviço na aldeia, graças a Deus, naquele momento ainda não estivesse sendo muito afetado.

Durante os quatros anos que moramos naquele lugar, que eu sabia, os efeitos do novo regime somente uma vez levaram a uma investigação contra sacerdotes que se comportavam de maneira “hostil ao Reich”; estava claro que meu pai não participava disso. (off: O pai de Bento XVI era comissário de polícia). Pelo contrário, ele avisava e apoiava os padres quando sabia que algum perigo os ameaçava.

Aliás, foi só aos poucos que o nacional-socialismo (nazismo) conseguiu transformar a vida na pequena aldeia.  Por exemplo: o professor, conforme era costume na Baviera, continuou, por algum tempo, a ser também o organista e dirigente do coral da igreja, e com a tarefa de dar aulas sobre a Bíblia, enquanto o Catecismo era assunto do vigário.

Tudo isso ainda parecia garantido pela concordata, * mas desde cedo ficou claro que a fidelidade a um pacto não tinha valor para os novos senhores.

A luta contra a escola confessional estava começando; o laço ainda existente entre a escola e a Igreja tinha de ser dissolvido, e a base espiritual da escola não devia mais ser a fé cristã, mas a ideologia do Fuhrer. Os bispos lutaram com todo o vigor pela escola confessional e pela observação da concordata: as cartas pastorais, que o vigário lia para o povo, ficaram em minha memória.

Na época eu já desconfiava, porém, que os bispos, naquela luta pelas instituições, até certo ponto não interpretavam bem a realidade, pois a garantia institucional de nada adianta quando não há pessoas que a sustentem por convicção interior.  E somente em parte era esse o caso.

Sem dúvida, havia nas gerações mais velhas, como também nas mais novas, professores com profunda convicção religiosa, para os quais a fé cristã era a base intrínseca da nossa cultura e, com isso, do seu trabalho educacional.  Nas gerações mais antigas, no entanto, havia também um ressentimento anticlerical, não difícil de entender, por causa do controle sobre as escolas, antigamente exercido pelo clero.

Nas gerações mais novas havia nazistas convictos. Tanto nesse como naquele caso, gabar-se de um Cristianismo institucionalmente garantido não levava a nada.

Meus professores durante aqueles quatro anos de escola em Aschau certamente não eram cristãos fervorosos, mas diante do novo movimento sua atitude era: “Vamos aguardar”. Já que a Igreja ainda estava no centro da aldeia, não apenas arquitetonicamente, mas sobretudo no modo de sentir e viver a vida, também não teria sido muito inteligente engajar-se contra ela com demasiada veemência.

Isso só criaria adversários do novo regime.

Um professor jovem – aliás de muito talento – estava, sem dúvida, entusiasmado pelas novas idéias. Tentou abrir, finalmente, uma brecha na sólida estrutura da vida dos aldeões, caracterizada pelo ano litúrgico. Mandou, por exemplo, levantar com muita pompa a Árvore de Maio, como símbolo da sempre renovada força vital. A Árvore de Maio devia restabelecer um pedaço da religião germânica, ajudando, assim, a suplantar o que era cristão, denunciado como alienação da nossa própria grande cultura germânica.

No mesmo estilo, ele organizava festejos de solstício, novamente como retorno à santa natureza e à nossa própria origem, no lugar das idéias estranhas sobre pecado e redenção, que nos teriam sido impingidas por uma religião estranha, judaico-cristã.

Quando ouço, hoje em dia, as críticas ao cristianismo pela destruição da identidade cultural de um local, invadido por valores europeus, percebo como as argumentações são semelhantes, e muitas frases floreadas me soam familiares.

Aliás, naquele tempo, afirmações semelhantes não impressionavam muito a mentalidade prosaica dos camponeses bávaros. Os rapazes estavam mais interessados nas lingüiças penduradas na Árvore de Maio, que caberiam a quem subisse na árvore mais rapidamente, do que nos sofisticados discursos do professor.

Outro sinal inquietante do novo tempo foi o farol que pouco depois foi erguido em Winterberg, um dos lugares altos em redor da aldeia. Quando seu forte clarão passava pelo céu noturno, isso nos parecia ser o relâmpago de um perigo para o qual ainda não existia nome.  Dizia-se que com isso aviões inimigos podiam ser descobertos. Mas no céu de Aschau não havia avião nenhum, portanto também nenhum avião inimigo.

Que aí se preparava algo que só podia ser profundamente inquietante, percebia-se vagamente, mas naquele mundo aparentemente ainda pacífico ninguém podia acreditar em um futuro sinistro.

Quando saímos de lá, em 1937, ficamos sabendo que havia um plano para a construção de uma “obra”, que, pouco depois, cuidadosamente camuflada, começou a surgir na floresta – uma fábrica de munição, imperceptível do alto: o que estava iminente, começava a assumir uma figura assustadoramente clara.

Mas, como já disse, nós mesmos não chegamos a ver isso acontecer. Naquele momento, o cotidiano da aldeia, em si, continuava como sempre tinha sido. Primeiro, meu irmão tornou-se acólito.

Em 1935, ele entrou para o ginásio de Traunstein e, depois, para o seminário arquiepiscopal do lugar: eu o segui, mas não pude igualá-lo em aplicação e capacidade.

Minha irmã freqüentou, a partir do mesmo ano, no vizinho mosteiro de Au, às margens do rio Inn, a escola de ensino médio para meninas, onde lecionavam as irmãs franciscanas, no antigo convento dos cônegos agostinianos; havia lá uma daquelas belas igrejas barrocas de nossa terra bávara.

Assim a Igreja, por enquanto, ainda caracterizava a educação, embora a escola de Au já fosse vítima de muitas distorções.

A vida dos agricultores ainda estava inserida, em sólida simbiose, na fé da Igreja: nascimento e morte, casamento e doença, semeadura e colheita – tudo era abrangido pela fé.

Embora a vida e o pensamento pessoais nem sempre correspondessem à fé da Igreja, ninguém conseguiria imaginar uma morte sem a presença da Igreja, ou os grandes acontecimentos da vida sem ela.

A vida ter-se-ia perdido no vazio, teria perdido a base que a sustentava e lhe dava sentido...

Fonte: Livro Lembranças de Minha Vida - Bento XVI

Depois continuamos

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