A Vida Espiritual - Explicada e Comentada - de Adolfh Tanquerey
Para bem resolvermos este problema, comecemos por fixar com precisão o estado da questão:
1 - Um ser é perfeito (per-fectum), na ordem natural quando é acabado, por conseguinte, quando atinge o seu fim: esta é a perfeição absoluta; mas há outra, relativa e progressiva, que consiste em se aproximar desse fim, desenvolvendo todas as faculdades e praticando todos os seus deveres, segundo as prescrições da lei natural manifestada pela reta razão.
O fim do homem, ainda mesmo na Ordem Natural, é Deus:
1) Criados por Ele, somos necessariamente criados para Ele, porque Deus não pode, evidentemente, encontrar um fim mais perfeito que Ele mesmo, que é a plenitude do ser; e, por outro lado, criar para um fim imperfeito, seria indigno d'Ele.
2) Ademais, sendo Deus a perfeição, o homem é tanto mais perfeito quanto mais se aproxima de Deus e participa das suas divinas perfeições; eis por que Ele não encontra nas criaturas nada que possa satisfazer as suas legítimas aspirações: «Ultimus hominis finis est bonum increatum, scilicet Deus, qui solus sua infinita bonita te potest voluntatem hominis perfecte implere». É para Deus, pois, que é mister orientar todas as nossas ações; conhecê-lo, amá-lo, servi-lo, e assim glorificá-lo, eis o fim da vida, a fonte de toda a perfeição.
Mais verdade é isto ainda na Ordem Sobrenatural.
Elevados gratuitamente por Deus a um estado que ultrapassa as nossas exigências e possibilidades; chamados a contemplá-lo um dia pela visão beatífica, e possuindo-o já pela graça; dotados dum organismo sobrenatural completo, para nos unirmos a Ele pela prática das virtudes cristãs, não podemos evidentemente aperfeiçoar-nos senão aproximando-nos dele sem cessar.
E, como o não podemos fazer, sem nos unirmos a Jesus, que é o caminho necessário para irmos ao Pai, a nossa perfeição consistirá em viver para Deus em união com Jesus Cristo: «Vivere summe Deo in Christo Iesu» . É o que fazemos praticando as virtudes cristãs, teologais e morais, que todas têm por fim unir-nos com Deus, de maneira mais ou menos direta, fazendo-nos imitar a Nosso Senhor Jesus Cristo.
Aqui se levanta, pois, a questão de saber se, entre estas virtudes, não haverá uma que recopile e contenha todas as demais, e que por isso mesmo constitua, por assim dizer, a essência da perfeição.
Santo Tomás, resumindo a doutrina dos nossos Livros inspirados e a dos Santíssimos Padres, responde afirmativamente e ensina que a perfeição consiste essencialmente no amor de Deus e do próximo amado por Deus: «Per se quidem et essentialiter consistit perfectio christianae vitae in caritate, principaliter quidem secundumdilectionem Dei, secundaria autem secundum dilectionem proximi»
Mas, como na vida presente, o amor de Deus se não pode exercitar, sem renunciar ao amor desordenado de si mesmo ou à tríplice concupiscência, na prática é necessário juntar o sacrifício ao amor.
É o que vamos expor, mostrando:
A - como o amor de Deus e do próximo constitui a essência da perfeição;
B - por que é que este amor deve subir até o sacrifício;
C- como se devem combinar estes dois elementos;
D - como a perfeição abraça juntamente os preceitos e os conselhos;
E - quais são os seus graus e até onde pode chegar na terra.
I. A essência da perfeição consiste na caridade
Expliquemos primeiro, o sentido da tese:
O amor de Deus e do próximo, de que se trata aqui, é sobrenatural no seu objeto como no seu motivo e princípio. O Deus, que amamos, é o Deus que a revelação nos manifesta, isto é, a Santíssima Trindade; porque a fé no-lo mostra infinitamente bom e amável; o amamo-lo com a vontade aperfeiçoada pela virtude da caridade e ajudada pela graça atual. Não é, pois, um amor de sensibilidade; sendo o homem, como é composto de corpo e alma, não há dúvida que se mistura muitas vezes um elemento sensível com as nossas mais nobres afeições; mas esse sentimento falta por vezes completamente, em todo caso é absolutamente acessório.
A essência própria do amor é a dedicação, a vontade firme de se dar e, tanto for necessário, de se imolar todo por Deus e pela sua glória, de preferir o seu divino agrado ao nosso e ao das criaturas.
Outro tanto, guardadas as proporções, se deve dizer do amor próximo.
É Deus que amamos nele, por ser imagem e reflexo das suas divinas perfeições; o motivo que nos leva a amá-lo é, pois, a bondade divina, enquanto manifestada, expressa, reverberada no próximo; em termos mais concretos, nós vemos e amamos em nossos irmãos almas habitadas pelo Espírito Santo, ornadas da graça divina, remidas com o preço do sangue de Jesus Cristo; amando-os, queremos o seu bem sobrenatural, o aperfeiçoamento das suas almas, a sua eterna salvação.
Assim pois, não há duas virtudes de caridade, uma para com Deus, outra para com o próximo; não há mais de uma só, que abraça juntamente a Deus amado por si mesmo e ao próximo amado por Deus. Com estas noções , fácil nos será compreender que a perfeição consiste nesta virtude da caridade.
As provas da tese
Interroguemos a Sagrada Escritura.
A) Tanto no Antigo como Novo Testamento, o que domina e resume toda a Lei, é o grande preceito da caridade, caridade para com Deus e caridade para com o próximo. Assim, quando um doutor da lei pergunta a Nosso Senhor Jesus Cristo o que é preciso fazer para assegurar a vida eterna, o divino Mestre limita-se a responder-lhe: Que diz a Lei? E o doutor, sem hesitar, cita o texto do Deuteronômio: «Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças e de todo o teu espírito, e ao teu próximo como a ti mesmo:
E ajunta noutro passo que este duplo preceito do amor de Deus e do próximo constitui a Lei e os Profetas.
É o que declara São Paulo, sob outra forma, quando, depois de ter lembrado os principais mandamentos do Decálogo, acrescenta que a plenitude da Lei é o amor: «Plenitudo legis dilectio». Assim, pois, o amor de Deus e do próximo é, a um tempo, a síntese e a plenitude da Lei.
Ora, a perfeição cristã não pode ser outra coisa senão o cumprimento perfeito e integral da Lei; porque a Lei é o que Deus quer e que há de mais perfeito que a santíssima vontade de
Deus?
B) Há outra prova, tirada da doutrina de São Paulo sobre a caridade, no capo 13 da l.a Epístola aos Coríntios onde, em linguagem lírica, descreve a excelência dessa virtude, a sua superioridade sobre os carismas ou graças gratuitamente dadas, bem como sobre as outras virtudes teologais, a fé e a esperança, e mostra que ela resume e contém eminentemente todas as virtudes, mais ainda, que é por si mesma a suma dessas virtudes; e termina dizendo que os carismas passarão, que a fé e a esperança desaparecerão, mas que a caridade é eterna.
Não será isto ensinar que ela é não somente a rainha e a alma das virtudes, mas que é tão excelente que basta para tornar um homem perfeito, comunicando-lhe todas as virtudes?
C) São João, o apóstolo do amor, dá-nos a razão fundamental desta doutrina.
Deus, diz ele, é caridade, Deus caritas est I; esta é, por assim dizer, a sua nota característica. Se, pois, nós queremos parecer com Ele, ser perfeitos como nosso Pai celeste, é mister amá-lo como Ele nos amou; e, como O não podemos amar, sem amar o próximo, devemos amar esse querido próximo até nos sacrificarmos por ele:
«Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque a caridade vem de Deus, e todo o que ama, é nascido de Deus e conhece a Deus.Aquele que não ama, não conheceu a Deus, porque Deus é o ama-Lo E este amor consiste em, que não fomos nós que amamos a Deus, mas em que foi Ele que nos amou primeiro e enviou seu Filho como vítima de propiciação pelos nossos pecados. Caríssimos, se Deus nos amou assim a nós, devemos nós também amar-nos uns aos outros ... Deus é caridade e quem permanece na caridade, em Deus permanece e Deus nele»
Não se pode mais claramente dizer que toda a perfeição consiste no amor de Deus e do próximo por Deus.
Interroguemos a razão iluminada pela fé: quer consideremos a natureza da perfeição quer a natureza da caridade, chegamos à mesma conclusão.
A) A perfeição dum ser consiste, dissemos nós acima, em alcançar o seu fim ou em se aproximar dele, o mais possível. Ora o fim do homem, na ordem sobrenatural, é Deus eternamente possuído pela visão beatífica e pelo amor que dela resulta; e na terra aproximar-nos desse fim, vivendo já em união íntima com a Santíssima Trindade que mora em nós e com Jesus, o Mediador necessário para ir ao Pai. Por conseguinte, quanto mais unidos estamos com Deus, nosso último fim e origem da nossa vida, tanto mais perfeitos somos.
Ora, qual é, entre as virtudes cristãs, a mais unitiva, a que une a nossa alma inteira a Deus, senão a divina caridade? As outras virtudes é certo que nos preparam para essa união, ou até nos iniciam nela, mas não a podem consumar.
As virtudes morais, prudência, fortaleza, temperança, justiça, etc., não nos unem diretamente com Deus, mas limitam-se a suprir ou diminuir os obstáculos que dele nos afastam, e a aproximar-nos de Deus pela conformidade com a ordem. Assim, a temperança, combatendo o uso imoderado do prazer, atenua um dos mais violentos obstáculos ao amor de Deus; a humildade, removendo o orgulho e o amor próprio, predispõe-nos à prática da divina caridade.
Além disso, estas virtudes, fazendo-nos praticar a ordem ou a justa medida, submetem a nossa vontade à de Deus e aproximam-nos dele.
Quanto às virtudes teologais, distintas da caridade, unem-nos sem dúvida a Deus, mas de maneira incompleta.
- A fé une-nos a Deus, verdade infalível, e faz-nos ver as coisas à luz divina; mas é compatível com o pecado mortal, que nos separa de Deus.
- A esperança eleva-nos até Deus, enquanto é bom para nós, e faz-nos desejar os bens do céu, mas pode subsistir com faltas graves, que nos afastam do nosso fim.
- Só a caridade nos une completamente a Deus.
Supõe a fé e a esperança, mas vai mais além: apodera-se de toda a nossa alma inteiramente, inteligência, coração, vontade, atividade, e dá-a a Deus sem reserva. Exclui o pecado mortal, esse inimigo de Deus, e faz-nos gozar da amizade divina.
Ora a amizade é a união, a fusão de duas almas numa só; união completa de todas as nossas faculdades: união do espírito, que faz que o nosso pensamento se molde pelo de Deus; união da vontade, que nos faz abraçar a vontade divina, como se fora a nossa; união do coração, que nos estimula a dar-nos a Deus, como Ele se nos dá a nós mesmos; união das forças ativas, em virtude da qual Deus põe ao serviço da nossa fraqueza o seu divino poder, para nos auxiliar a cumprir os nossos bons propósito.
A caridade une-nos, pois, a Deus, nosso fim, a Deus, infinitamente perfeito, e constitui assim o elemento essencial de nossa perfeição A caridade encerra todas as virtudes.
A perfeição consiste, evidentemente, na aquisição das virtudes: quem as adquiriu todas, em grau não somente inicial, mas elevado, é sem dúvida perfeito. Ora, quem possui a caridade possui todas as virtudes na sua perfeição; a fé, sem a qual se não podem conhecer e amar as infinitas amabilidades de Deus; a esperança que, inspirando a confiança, nos conduz ao amor; e todas as virtudes morais, por exemplo, a prudência, sem a qual a caridade não se poderia conservar nem crescer; a fortaleza, que nos faz triunfar dos obstáculos que levantam contra a prática da caridade; a temperança, que refreia a sensualidade, inimiga implacável do amor divino.
Mais ainda, acrescenta São Francisco de Sales, «o grande Apóstolo não diz somente que a caridade nos dá paciência, benignidade, constância, simplicidade; antes diz que ela mesma é paciente, benigna, constante», porque contém a perfeição de todas as virtudes
Dá-lhes até uma perfeição e valor especial; é segundo a expressão de Santo Tomás, a forma de todas as virtudes.
«Todas as virtudes, separadas da caridade, são muito imperfeitas, pois não podem sem ela chegar ao seu fim que é tornar o homem feliz ... Não nego que sem a caridade possam nascer, e até mesmo fazer progressos; mas que tenham a sua perfeição, para merecerem o título de virtudes feitas formadas e consumadas, isso depende da caridade que lhes dá a força de voar para Deus e recolher da sua misericórdia o mel do verdadeiro mérito e da santificação dos corações, em que elas se encontram. A caridade é entre as virtudes como o sol entre as estrelas: por todas reparte a sua claridade e beleza. A fé, a esperança, o temor e penitência vêm ordinariamente adiante dela à alma, para lhe prepararem a morada e, tanto que ela chega, obedecem-lhe e servem-na como todas as demais virtudes, e ela a todas anima, adorna e vivifica pela presença»(São Francisco de Sales).
Por outros termos, a caridade, orientando diretamente a nossa alma para Deus, suprema perfeição e fim último, dá assim a todas as outras virtudes, que se vêm enfileirar sob seu império, a mesma orientação e, por conseguinte, o mesmo valor.
Assim, um ato de obediência e de humildade, além do seu valor próprio, recebe da cariadade um valor muito maior, quanto é feito para agradar a Deus, porque então se transforma num ato de amor, isto é, num ato da mais perfeita das virtudes. Acrescentemos que esse ato se torna mais fácil e atraente: obedecer e humilhar-se custa muito à nossa orgulhosa natureza; mas ter a convicção de que, praticando esses atos, amamos a Deus e procuramos a sua glória, facilita-os singularmente.
Assim pois, a caridade é não somente a síntese, mas a alma de todas as virtudes, e une-nos a Deus de maneira mais perfeita e direta que nenhum delas: é, pois, a caridade que constitui a própria essência da perfeição.
Conclusão
Se é certo que a essência da perfeição consiste no amor de Deus, concluamos que o atalho maravilhoso para a alcançar, é amar muito, amar com generosidade e intensidade, e sobretudo com amor puro e desinteressado.
Ora, não é somente quando recitamos um ato de caridade que amamos a Deus, senão também cada vez que fazemos a sua vontade ou cumprimos um dever, ainda o mais pequenino, com a intenção de lhe agradar. Assim pois, cada uma das nossas ações, por mais vulgar que seja em si mesma, pode ser transformada em um ato de amor e fazer-nos avançar para a perfeição. - O progresso será tanto mais real e acelerado quanto mais intenso e generoso for este amor, e, por conseguinte, quanto mais enérgico e constante for o nosso esforço; porquanto, o que vale aos olhos de Deus é a vontade, é o esforço, independentemente de toda a emoção sensível.
E, já que o amor sobrenatural do próximo é também um ato de amor de Deus, todos os serviços que prestamos a nossos irmãos, vendo neles um reflexo das perfeições divinas, contemplando neles a Jesus Cristo, convertem-se em atos de amor, que nos fazem avançar para a santidade.
Assim pois, amar a Deus e ao próximo por Deus, eis o segredo da perfeição, contando que neste mundo se lhe junte o sacrifício.
Estudo sobre a Graça - veja AQUI
Aqui se levanta, pois, a questão de saber se, entre estas virtudes, não haverá uma que recopile e contenha todas as demais, e que por isso mesmo constitua, por assim dizer, a essência da perfeição.
Santo Tomás, resumindo a doutrina dos nossos Livros inspirados e a dos Santíssimos Padres, responde afirmativamente e ensina que a perfeição consiste essencialmente no amor de Deus e do próximo amado por Deus: «Per se quidem et essentialiter consistit perfectio christianae vitae in caritate, principaliter quidem secundumdilectionem Dei, secundaria autem secundum dilectionem proximi»
Mas, como na vida presente, o amor de Deus se não pode exercitar, sem renunciar ao amor desordenado de si mesmo ou à tríplice concupiscência, na prática é necessário juntar o sacrifício ao amor.
É o que vamos expor, mostrando:
A - como o amor de Deus e do próximo constitui a essência da perfeição;
B - por que é que este amor deve subir até o sacrifício;
C- como se devem combinar estes dois elementos;
D - como a perfeição abraça juntamente os preceitos e os conselhos;
E - quais são os seus graus e até onde pode chegar na terra.
I. A essência da perfeição consiste na caridade
Expliquemos primeiro, o sentido da tese:
O amor de Deus e do próximo, de que se trata aqui, é sobrenatural no seu objeto como no seu motivo e princípio. O Deus, que amamos, é o Deus que a revelação nos manifesta, isto é, a Santíssima Trindade; porque a fé no-lo mostra infinitamente bom e amável; o amamo-lo com a vontade aperfeiçoada pela virtude da caridade e ajudada pela graça atual. Não é, pois, um amor de sensibilidade; sendo o homem, como é composto de corpo e alma, não há dúvida que se mistura muitas vezes um elemento sensível com as nossas mais nobres afeições; mas esse sentimento falta por vezes completamente, em todo caso é absolutamente acessório.
A essência própria do amor é a dedicação, a vontade firme de se dar e, tanto for necessário, de se imolar todo por Deus e pela sua glória, de preferir o seu divino agrado ao nosso e ao das criaturas.
Outro tanto, guardadas as proporções, se deve dizer do amor próximo.
É Deus que amamos nele, por ser imagem e reflexo das suas divinas perfeições; o motivo que nos leva a amá-lo é, pois, a bondade divina, enquanto manifestada, expressa, reverberada no próximo; em termos mais concretos, nós vemos e amamos em nossos irmãos almas habitadas pelo Espírito Santo, ornadas da graça divina, remidas com o preço do sangue de Jesus Cristo; amando-os, queremos o seu bem sobrenatural, o aperfeiçoamento das suas almas, a sua eterna salvação.
Assim pois, não há duas virtudes de caridade, uma para com Deus, outra para com o próximo; não há mais de uma só, que abraça juntamente a Deus amado por si mesmo e ao próximo amado por Deus. Com estas noções , fácil nos será compreender que a perfeição consiste nesta virtude da caridade.
As provas da tese
Interroguemos a Sagrada Escritura.
A) Tanto no Antigo como Novo Testamento, o que domina e resume toda a Lei, é o grande preceito da caridade, caridade para com Deus e caridade para com o próximo. Assim, quando um doutor da lei pergunta a Nosso Senhor Jesus Cristo o que é preciso fazer para assegurar a vida eterna, o divino Mestre limita-se a responder-lhe: Que diz a Lei? E o doutor, sem hesitar, cita o texto do Deuteronômio: «Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças e de todo o teu espírito, e ao teu próximo como a ti mesmo:
E ajunta noutro passo que este duplo preceito do amor de Deus e do próximo constitui a Lei e os Profetas.
É o que declara São Paulo, sob outra forma, quando, depois de ter lembrado os principais mandamentos do Decálogo, acrescenta que a plenitude da Lei é o amor: «Plenitudo legis dilectio». Assim, pois, o amor de Deus e do próximo é, a um tempo, a síntese e a plenitude da Lei.
Ora, a perfeição cristã não pode ser outra coisa senão o cumprimento perfeito e integral da Lei; porque a Lei é o que Deus quer e que há de mais perfeito que a santíssima vontade de
Deus?
B) Há outra prova, tirada da doutrina de São Paulo sobre a caridade, no capo 13 da l.a Epístola aos Coríntios onde, em linguagem lírica, descreve a excelência dessa virtude, a sua superioridade sobre os carismas ou graças gratuitamente dadas, bem como sobre as outras virtudes teologais, a fé e a esperança, e mostra que ela resume e contém eminentemente todas as virtudes, mais ainda, que é por si mesma a suma dessas virtudes; e termina dizendo que os carismas passarão, que a fé e a esperança desaparecerão, mas que a caridade é eterna.
Não será isto ensinar que ela é não somente a rainha e a alma das virtudes, mas que é tão excelente que basta para tornar um homem perfeito, comunicando-lhe todas as virtudes?
C) São João, o apóstolo do amor, dá-nos a razão fundamental desta doutrina.
Deus, diz ele, é caridade, Deus caritas est I; esta é, por assim dizer, a sua nota característica. Se, pois, nós queremos parecer com Ele, ser perfeitos como nosso Pai celeste, é mister amá-lo como Ele nos amou; e, como O não podemos amar, sem amar o próximo, devemos amar esse querido próximo até nos sacrificarmos por ele:
«Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque a caridade vem de Deus, e todo o que ama, é nascido de Deus e conhece a Deus.Aquele que não ama, não conheceu a Deus, porque Deus é o ama-Lo E este amor consiste em, que não fomos nós que amamos a Deus, mas em que foi Ele que nos amou primeiro e enviou seu Filho como vítima de propiciação pelos nossos pecados. Caríssimos, se Deus nos amou assim a nós, devemos nós também amar-nos uns aos outros ... Deus é caridade e quem permanece na caridade, em Deus permanece e Deus nele»
Não se pode mais claramente dizer que toda a perfeição consiste no amor de Deus e do próximo por Deus.
Interroguemos a razão iluminada pela fé: quer consideremos a natureza da perfeição quer a natureza da caridade, chegamos à mesma conclusão.
A) A perfeição dum ser consiste, dissemos nós acima, em alcançar o seu fim ou em se aproximar dele, o mais possível. Ora o fim do homem, na ordem sobrenatural, é Deus eternamente possuído pela visão beatífica e pelo amor que dela resulta; e na terra aproximar-nos desse fim, vivendo já em união íntima com a Santíssima Trindade que mora em nós e com Jesus, o Mediador necessário para ir ao Pai. Por conseguinte, quanto mais unidos estamos com Deus, nosso último fim e origem da nossa vida, tanto mais perfeitos somos.
Ora, qual é, entre as virtudes cristãs, a mais unitiva, a que une a nossa alma inteira a Deus, senão a divina caridade? As outras virtudes é certo que nos preparam para essa união, ou até nos iniciam nela, mas não a podem consumar.
As virtudes morais, prudência, fortaleza, temperança, justiça, etc., não nos unem diretamente com Deus, mas limitam-se a suprir ou diminuir os obstáculos que dele nos afastam, e a aproximar-nos de Deus pela conformidade com a ordem. Assim, a temperança, combatendo o uso imoderado do prazer, atenua um dos mais violentos obstáculos ao amor de Deus; a humildade, removendo o orgulho e o amor próprio, predispõe-nos à prática da divina caridade.
Além disso, estas virtudes, fazendo-nos praticar a ordem ou a justa medida, submetem a nossa vontade à de Deus e aproximam-nos dele.
Quanto às virtudes teologais, distintas da caridade, unem-nos sem dúvida a Deus, mas de maneira incompleta.
- A fé une-nos a Deus, verdade infalível, e faz-nos ver as coisas à luz divina; mas é compatível com o pecado mortal, que nos separa de Deus.
- A esperança eleva-nos até Deus, enquanto é bom para nós, e faz-nos desejar os bens do céu, mas pode subsistir com faltas graves, que nos afastam do nosso fim.
- Só a caridade nos une completamente a Deus.
Supõe a fé e a esperança, mas vai mais além: apodera-se de toda a nossa alma inteiramente, inteligência, coração, vontade, atividade, e dá-a a Deus sem reserva. Exclui o pecado mortal, esse inimigo de Deus, e faz-nos gozar da amizade divina.
Ora a amizade é a união, a fusão de duas almas numa só; união completa de todas as nossas faculdades: união do espírito, que faz que o nosso pensamento se molde pelo de Deus; união da vontade, que nos faz abraçar a vontade divina, como se fora a nossa; união do coração, que nos estimula a dar-nos a Deus, como Ele se nos dá a nós mesmos; união das forças ativas, em virtude da qual Deus põe ao serviço da nossa fraqueza o seu divino poder, para nos auxiliar a cumprir os nossos bons propósito.
A caridade une-nos, pois, a Deus, nosso fim, a Deus, infinitamente perfeito, e constitui assim o elemento essencial de nossa perfeição A caridade encerra todas as virtudes.
A perfeição consiste, evidentemente, na aquisição das virtudes: quem as adquiriu todas, em grau não somente inicial, mas elevado, é sem dúvida perfeito. Ora, quem possui a caridade possui todas as virtudes na sua perfeição; a fé, sem a qual se não podem conhecer e amar as infinitas amabilidades de Deus; a esperança que, inspirando a confiança, nos conduz ao amor; e todas as virtudes morais, por exemplo, a prudência, sem a qual a caridade não se poderia conservar nem crescer; a fortaleza, que nos faz triunfar dos obstáculos que levantam contra a prática da caridade; a temperança, que refreia a sensualidade, inimiga implacável do amor divino.
Mais ainda, acrescenta São Francisco de Sales, «o grande Apóstolo não diz somente que a caridade nos dá paciência, benignidade, constância, simplicidade; antes diz que ela mesma é paciente, benigna, constante», porque contém a perfeição de todas as virtudes
Dá-lhes até uma perfeição e valor especial; é segundo a expressão de Santo Tomás, a forma de todas as virtudes.
«Todas as virtudes, separadas da caridade, são muito imperfeitas, pois não podem sem ela chegar ao seu fim que é tornar o homem feliz ... Não nego que sem a caridade possam nascer, e até mesmo fazer progressos; mas que tenham a sua perfeição, para merecerem o título de virtudes feitas formadas e consumadas, isso depende da caridade que lhes dá a força de voar para Deus e recolher da sua misericórdia o mel do verdadeiro mérito e da santificação dos corações, em que elas se encontram. A caridade é entre as virtudes como o sol entre as estrelas: por todas reparte a sua claridade e beleza. A fé, a esperança, o temor e penitência vêm ordinariamente adiante dela à alma, para lhe prepararem a morada e, tanto que ela chega, obedecem-lhe e servem-na como todas as demais virtudes, e ela a todas anima, adorna e vivifica pela presença»(São Francisco de Sales).
Por outros termos, a caridade, orientando diretamente a nossa alma para Deus, suprema perfeição e fim último, dá assim a todas as outras virtudes, que se vêm enfileirar sob seu império, a mesma orientação e, por conseguinte, o mesmo valor.
Assim, um ato de obediência e de humildade, além do seu valor próprio, recebe da cariadade um valor muito maior, quanto é feito para agradar a Deus, porque então se transforma num ato de amor, isto é, num ato da mais perfeita das virtudes. Acrescentemos que esse ato se torna mais fácil e atraente: obedecer e humilhar-se custa muito à nossa orgulhosa natureza; mas ter a convicção de que, praticando esses atos, amamos a Deus e procuramos a sua glória, facilita-os singularmente.
Assim pois, a caridade é não somente a síntese, mas a alma de todas as virtudes, e une-nos a Deus de maneira mais perfeita e direta que nenhum delas: é, pois, a caridade que constitui a própria essência da perfeição.
Conclusão
Se é certo que a essência da perfeição consiste no amor de Deus, concluamos que o atalho maravilhoso para a alcançar, é amar muito, amar com generosidade e intensidade, e sobretudo com amor puro e desinteressado.
Ora, não é somente quando recitamos um ato de caridade que amamos a Deus, senão também cada vez que fazemos a sua vontade ou cumprimos um dever, ainda o mais pequenino, com a intenção de lhe agradar. Assim pois, cada uma das nossas ações, por mais vulgar que seja em si mesma, pode ser transformada em um ato de amor e fazer-nos avançar para a perfeição. - O progresso será tanto mais real e acelerado quanto mais intenso e generoso for este amor, e, por conseguinte, quanto mais enérgico e constante for o nosso esforço; porquanto, o que vale aos olhos de Deus é a vontade, é o esforço, independentemente de toda a emoção sensível.
E, já que o amor sobrenatural do próximo é também um ato de amor de Deus, todos os serviços que prestamos a nossos irmãos, vendo neles um reflexo das perfeições divinas, contemplando neles a Jesus Cristo, convertem-se em atos de amor, que nos fazem avançar para a santidade.
Assim pois, amar a Deus e ao próximo por Deus, eis o segredo da perfeição, contando que neste mundo se lhe junte o sacrifício.
Estudo sobre a Graça - veja AQUI
Nenhum comentário:
Postar um comentário