sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Viver no Campo


Por Padre Leo Trese

9,00

Viver no campo tem as suas vantagens. De manhã, não se encontra nenhum jornal em cima da mesa, e portanto podemos tomar o café pensando no que vamos fazer durante o dia. Hoje, por exemplo, tenho que ...tanta coisa!

O primeiro gole do café forte e aromático preparado por Annie faz-me dar mais uma vez graças a Deus pela governanta que tão bem o sabe fazer e que possui, além de outras, a qualidade de ser asseada, discreta e bem-humorada; e, acima de tudo, leal.

A lealdade - penso eu, enquanto como - é a qualidade mais barata que existe. Compramo-la ao preço da consideração e da cortesia para com os outros.

Não é que eu tenha algum mérito por respeitar os sentimentos alheios; é um hábito natural, não uma virtude - um hábito que devo a circunstancia de ter sido criado numa família de sete e de ter tido uma mãe judiciosa. Ainda me parece ouvir a sua voz firme e paciente: "Léo, guarda a revista que deixaste em cima da mesa"; "Léo, tira a malha dessa cadeira e vai po-la no armário"; "Léo, vem cá e põem essa roupa suja no cesto".

Lembro-me de que eu resmungava, mas obedecia, e assim se foi formando em mim o hábito da ordem - um hábito que agora paga dividendos sob a forma de uma governanta que, no dia em que quizesse ir embora, ganharia bastante mais em outra casa e teria um dia livre por semana.

Não é que eu não tenha tido meus momentos de recaída. Vem-me ao espírito algumas cenas do passado: três padres coadjuntores que nos saciávamos com uma melancia na cozinha de Saint-Alice, e depois enchíamos os canos da pia de sementes e acumulávamos as cascas no escorredor de pratos, enquanto discutíamos - oh ironia! - sobre o genio e a ambição de mandar das governantas dos padres.

Revejo também um cinzeiro entornado que ficou onde caiu ("Deixe que ela limpa; é para isso que lhe pagamos"). Ou a cena de uns sapatos enlameados que foram deixando marcas por toda a casa ("Estou com pressa e aliás, esfregar um pouco não lhe fará mal nenhum"). E a imagem de um quarto de padre com os lençóis espalhados pelo chão, papéis amarrotados, livros amontoados sobre o parapeito da janela e sobre o aquecedor!

Estranhas criaturas que servem uma casa paroquial. Ao lembrar-me de tudo o que tiveram que aguentar-me, pergunto-me como é que muitas delas não enlouqueceram por completo. Parece-me - enquanto mordo a segunda torrada - que a diferença entre uma casa feliz de um sacerdote e uma mera pensão de clérigo se resume numa simples palavra: "consideração". É uma virtude tão pequena que, por isso mesmo, é continuamente descuidada, ao passo, que virtudes mais deslumbrantes estimulam o nosso esforço.

Conheci sacerdotes castos, sóbrios e justos, em cujas casas faltavam essa atmosfera de tranquilidade e alegria que um coadjutor deve encontar no lar em que tem de viver por obrigação. E também conheci coadjutores piedosos, cheios de zelo e responsáveis, que pela habitual irreflexão faziam com que mais de um pároco desejasse que nunca tivessem sido mandados para a sua paróquia.

Pensando bem, acho que um caso a discutir poderia ser este: qual papel que a pequena virtude da consideração desempenha na santidade sacerdotal - consideração do pároco, e de uns e outros pela empregada doméstica.

É bem mais fácil a vida de oração numa atmosfera de paz e felicidade. Um ambiente em que até as vacas - como se diz - dão mais leite e os psiquiatras tem pouco que fazer. E que aliás, se pode conseguir tão facilmente! Em primeiro lugar, deve haver uma consciente preocupação pelos outros. Deve haver um cordial desdém pelos "direitos" próprios e uma vontade alegre de renunciar aos privilégios.

Deve haver ainda a disposição de aceitar, como coisa natural, uma parte da carga de trabalho superior à que nos corresponde, e até uma rivalidade por assumir as tarefas mais desagradáveis. Bem, talvez a coisa não seja tão fácil como pensava, sobretudo se na família paroquial há um membro desarticulado e disposto a consentir que sejam sempre os outros a tomarem a iniciativa de fazer o bem.

Mas sempre é melhor o céu enevoado do que a escuridão total.

Quando me lembro dos meus irmãos que abandonaram o sacerdócio, cujos nomes já não constam do elenco do clero da diocese ( meu Deus, salvai-os e perdoai-me!), aflige-me pensar que em alguns casos a crise desses homens começou por atritos, desgostos e ressentimentos dentro das paredes que deveriam ser o seu lar.

É fácil que nós, sacerdotes, nos convençamos de que somos impecáveis, e a impecabilidade e a harmonia são conceitos completamente antitéticos.

Faber descreve nas suas Conferencias espirituais "o espírito amargo e crítico de um homem que se mortificou até a rispidez por não possuir graça suficiente para vencer a sua incapacidade natural de ser amável".

Outro escritor, um pouco mais mordaz, observa: "É quase inacreditável como muitas pessoas vão estreitando o círculo das suas amizades e estimando-se a si próprias - até se fazerem a si mesmas o modelo único de perfeição".

Sim? E que direi eu de mim, aqui sentado tão satisfeito, sorvendo o café e reformando o mundo? melhor seria recordar-me de algumas outras citações, tais como esta: "Deus fez o homem juiz de si próprio para que a si próprio se condene, e juiz dos outros para que os desculpe as suas faltas".

Mas o que é que me levou a pensar em tudo isto? As governantas, foi isso. Algum moderno Bossuet deveria escrever um poema para que els pudessem pendurar nos seus quartos. "Meu Deus, que vida! E é a tua, pobre governanta de um sacerdote!"


Fonte: Vaso de Argila

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