terça-feira, 19 de agosto de 2014

Os Anos de Ginásio em Traunstein


Por Bento XVI

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"Os policiais daquele tempo aposentavam-se ao completar 60 anos de idade, por causa dos consideráveis esforços físicos que a profissão exigia. Meu pai esperou ansiosamente por esse dia. Os freqüentes serviços noturnos que faziam parte de suas tarefas o incomodavam.

Mais pesada ainda lhe era a situação política em que tinha que cumprir seu serviço. Ele conseguiu uma licença médica mais demorada, durante a qual, muitas vezes, foi caminhar comigo, contando-me coisas de sua vida. Finalmente, no dia 6 de março de 1937, ele completou seus 60 anos.

Em 1933 meus pais tinham conseguido comprar, por baixo preço, uma velha casa de fazenda, do ano de 1726 (assim estava escrito, se me recordo bem, numa viga do telhado), na periferia de Traunstein. Os proprietários de outrora tinham dissipado as terras; à casa pertencia ainda um gramado grande, no qual se erguiam duas imponentes cerejeiras, além de uns pés de maçã, pêra e ameixa. Esse terreno estava delimitado por um bosque de carvalhos, a uma distância de poucos passos da casa, além do qual se estendia uma floresta de pinheiros, até uma distância de muitas horas.

A casa tinha sido construída no estilo alpino da região de Salzburgo: celeiros e estábulos debaixo de um só teto com a moradia. O teto dos estábulos e celeiros ainda era coberto de telhas de madeira, que o peso de pedras protegia contra o vento.

Não havia água corrente; em compensação, um poço na frente da casa tinha uma água deliciosa, fresquinha. Mais tarde, porém, quando surgiram outras casas com poços na vizinhança,o nosso, em épocas sem chuva, acabava secando. As janelas do quarto de dormir, onde nós, meninos, estávamos alojados, abriam-se para o sul. Quando, de manhã cedo, abríamos as cortinas, estavam lá, quase ao nosso alcance, o Hochfellen e o Hochgern, as duas montanhas “caseiras” de Traunstein.

No descurso dos anos, nossa mãe transformou em um lar maravilhoso aquela casa, inicialmente meio estragada, que nosso pai mandara reformar. Nas janelas havia jardineiras com flores, e mamãe plantou dois canteiros nos quais crescia tudo o que era útil, os quais, por sua vez, estavam também cercados por uma abundância de flores.

A meu pai, o estado desta nossa casa, desta nossa nova morada, causou muita preocupação, mas para nós foi um paraíso, como não poderíamos ter sonhado mais belo.

Havia lá alpendres espaçosos cheios de mistérios, além de uma oficina de tecelagem, em que os proprietários anteriores, sem dúvida, haviam trabalhado, e depois: o gramado, o poço, as árvores e a floresta... Foi aí que, depois de muitas mudanças, encontramos finalmente o nosso lar, para onde sempre voltam as minhas gratas lembranças.

Nunca vou me esquecer da primeira impressão: o caminhão da mudança já tinha ido mais cedo; nós chegamos ao carro da dona da casa em Aschau, e a primeira coisa que vimos foi o gramado, salpicado de prímulas. Era o início de abril.

Com a mudança para Traunstein, porém, começou também para mim uma vida mais séria. Poucos dias depois de nossa chegada, a escola abriu suas portas; entrei para o primeiro ano no “ginásio humanístico”, que hoje seria chamado “ginásio para línguas antigas”.

Tinha que andar meia hora até a escola, tempo suficiente para observar e pensar, mas também para repetir o que tinha aprendido na escola.  A escola primária de Aschau, a bem dizer, não dera muito resultado. Agora, encontrava-me diante de uma nova matéria e uma nova exigência, ainda mais porque eu era o mais novo e um dos mais baixinhos de toda a turma.

Ainda se ensinava o latim, com aquele vigor e solidez de antigamente, como base de todo o ensino, o que me deixou grato pelo restante da vida; como teólogo não tive dificuldade para ler as fontes em latim e grego; e em Roma, durante o Concílio, pude me adaptar rapidamente ao latim dos teólogos que lá se falava, embora nunca tivesse ouvido palestras nessa língua.

Também no ginásio de Traunstein o nazismo ainda não tinha conseguido mudar muita coisa. Da velha guarda dos filósofos das línguas antigas, ninguém tinha aderido ao partido, apesar da considerável pressão exercida sobre os funcionários. Pouco depois de minha entrada no ginásio, o vice-reitor foi demitido porque não agradou aos novos senhores.

Uma retrospectiva me faz pensar que a formação pela antiguidade greco-latina criava uma atitude espiritual que se opunha às seduções da ideologia totalitária.

Folheando nosso livro de cânticos daquela época, que, além das valiosas músicas antigas, continha também uma série de cantos nazistas, vi que nosso professor de música, um católico sincero, havia mandado riscar, com muita tinta, as palavras“Judá den Tod” [a Judá a morte] e escrever no seu lugar: “Wend die Not” [acaba com a miséria].

Mas um ano depois de minha entrada no ginásio, houve uma reforma radical. Até aquela época o ginásio e a escola profissionalizante tinham existido separadamente, como duas instituições distintas.

Fundiram-se, então, em um novo tipo de escola, a chamada OBERSCHULE (escola secundária), da qual o ensino do grego desapareceu totalmente e o latim foi consideravelmente reduzido, começando apenas no terceiro ano, ao passo que as línguas modernas, especialmente o inglês, e as ciências naturais ganharam mais peso.


Com o novo tipo de escola chegou também uma outra geração, mais nova, de professores, alguns excelentes, sem dúvida, mas entre eles também havia, naturalmente, propagadores entusiastas do novo regime.  Daí a mais três anos o ensino religioso foi excluído da escola, enquanto a prática dos esportes aumentou proporcionalmente.

Ao ginásio, condenados a acabar, eles preservaram amplamente sua forma antiga, graças a Deus. Enquanto isso, os trovões da história mundial também já ressoavam mais alto.

No início de 1938 houve inúmeros movimentos de tropas; falava-se de uma guerra contra a Áustria, até que um dia chegou a notícia de uma invasão do exército alemão a esse país e de sua anexação ao Reich alemão, que daí para frente seria chamado “Groszdeutschland” [Grande Alemanha].

Para nós, a tomada do poder na Áustria pelos potentados marrons teve também um lado positivo: Hitler tinha fechado as fronteiras para o país vizinho. Ainda me lembro de que um dia fizemos uma excursão de Aschau para a amada Tittmoning, mas a ponte sobre o Salzach, que tantas vezes tínhamos atravessado, estava fechada; já não era ponte, mas fronteira.

Agora a Áustria estava novamente aberta, infelizmente a um preço alto demais. Daí em diante fomos muitas vezes, com nossos pais, para a vizinha Salzburgo; disso sempre fazia parte uma romaria para Maria Plain e uma visita às magníficas igrejas, sentindo a influência do ambiente daquela excepcional cidade.

Dentro em pouco, meu irmão tomou a iniciativa de conhecer ainda uma outra dimensão de Salzburgo: por causa da guerra, o festival tinha perdido seu público internacional. Podíamos conseguir ingressos realmente bons por preços muito baixos.

Assim, assistimos à Nona Sinfonia de Beethoven, dirigida por Knappertsbusch, à Missa em Dó Menor de Mozart, a um concerto do coral da catedral de Ratisbona e a muitos outros concertos inesquecíveis.

Neste meio- tempo, vivi uma mudança bem decisiva em minha vida.

Durante dois anos tinha ido diretamente, com muito prazer, de nossa casa para a escola, mas agora o pároco insistia para que eu entrasse para o seminário, a fim de ser introduzido, sistematicamente, na vida espiritual.  Para meu pai, cuja aposentadoria era bem parca, isso foi um grande sacrifício.

De outro lado, minha irmã, depois de terminar o ensino médio e o ano de estudo de agronomia, obrigatório para as meninas, conseguira um emprego no escritório de uma grande empresa em Traunstein, aliviando, com isso, o orçamento familiar.

Assim, a decisão foi tomada, e eu entrei para o seminário na Páscoa de 1939, alegre e com grande expectativa, porque meu irmão me tinha contado muitas coisas bonitas a esse respeito, e eu vivia em boa amizade com os seminaristas da minha classe.

Mas sou um daqueles seres humanos que não foram criados para viver em internato. Em casa eu tinha vivido com muita liberdade, tinha estudado como queria, tinha construído meu próprio mundo infantil.

Ser colocado agora em uma sala de estudo com mais uns sessenta meninos era, para mim, uma tortura, e aprender, coisa que tinha sido tão fácil, agora me parecia quase impossível.

Porém, o mais difícil para mim era que todos os dias, de acordo com as idéias progressistas de educação, estavam prescritas duas horas de esporte na grande quadra ao lado da casa; e, além disso, os meus colegas eram todos mais velhos do que eu, alguns até três anos, e em força física eu era muito inferior a quase todos.

Assim, aquilo se tornou um verdadeiro tormento.

É preciso dizer, no entanto, que meus colegas eram na verdade muito tolerantes, mas com o tempo torna-se desagradável depender da tolerância dos outros e saber que só atrapalhamos o time em que somos colocados.

Enquanto isso, agrava-se o drama da história, em conseqüência dos atos do Terceiro Reich.

Surgiu a crise dos sudetos, sendo depois esquentada com uma maquinaria de mentiras, transparente até para os ingênuos. Era evidente que o acordo de Munique, que havia sancionado a anexação da região dos Sudetos, era um adiamento, não uma solução do problema.

Meu pai não conseguia entender que os franceses, que ele tanto estimava, parecessem aceitar quase como algo normal uma série de atos ilegais de Hitler. Na primavera de 1939, seguiu a ocupação da Tchecoslováquia, e no dia 1º. De setembro do mesmo ano, depois de uma nova campanha no mesmo estilo, agora contra a Polônia, a guerra eclodiu.

A guerra ainda estava longe de nós, mas o futuro nos parecia inquietante, ameaçador e imprevisível.

Uma conseqüência imediata da eclosão da guerra foi que o seminário foi declarado hospital militar, e eu, então com meu irmão, podia novamente ir à pé de nossa casa para a escola.

Mas o diretor conseguiu um outro alojamento, primeiro no sanatório da cidade (que o vigário Kneipp teria gostado de transformar em uma grande cidade, a ser chamada de “Kneipp”), depois no instituto para meninas, das Damas Inglesas, em Sparz, na parte alta da cidade.

Como os nazistas tinham fechado as escolas conventuais, a casa estava vazia, e a comunidade do seminário podia agora encontrar lá seu alojamento. Mas não havia área de esportes.

Em vez disso, caminhávamos na parte da tarde, juntos, pelos bosques da redondeza, e brincávamos à beira do córrego que descia da montanha. Construíamos barragens, pescávamos etc.

Era uma vida alegre, de meninos mesmo. Então reconciliei-me com o seminário e vivi um período maravilhoso.  Tive que aprender a me adaptar ao grupo e a sair de minha excentricidade, construindo, no dar e receber, uma comunidade com os demais. Sou grato por essa experiência; ela foi importante para a minha vida.

Inicialmente, a guerra parecia quase irreal. Depois que Hitler, com a União Soviética, derrubou a Polônia, estabeleceu-se um silêncio. As potências ocidentais pareciam indecisas, e na fronteira com a França não acontecia praticamente nada.

O ano de 1940 foi marcado, então, pelos grandes triunfos de Hitler: a Dinamarca e a Noruega foram ocupadas; Holanda, Bélgica, Luxemburgo e França foram derrotados em pouco tempo.

Até as pessoas que eram adversárias do nazismo sentiam uma espécie de satisfação patriótica.

O grande historiador do Concílio, Hubert Jedin, mais tarde meu colega em Bonn, foi obrigado, sendo meio judeu, a fugir da Alemanha; passou os anos de Hitler no Estado do Vaticano, em exílio involuntário; mas em suas memórias ele descreveu profundamente o curioso dilema de sentimentos que lhe provocaram os acontecimentos daqueles dias.

Meu pai enxergava muito precisamente, com incorruptível clarividência, que a vitória de Hitler não seria uma vitória da Alemanha, mas uma vitória do anticristo, que introduziria tempos apocalípticos para todos os crentes, e não apenas para eles.

A guerra continuou seu implacável caminho. Os Bálcãs foram a próxima região a ser submetida ao domínio de Hitler. Mas o fato de a invasão da Inglaterra, grandiosamente anunciada, ser sempre adiada, suscitou dúvidas e inquietação.

Continua inesquecível, para mim, aquele domingo ensolarado do ano de 1941, em que nos surpreendeu a notícia de que a Alemanha, com seus aliados, em uma frente que ia do Pólo Norte até o Mar Negro, tinha iniciado um ataque contra a União Soviética.

Minha turma tinha combinado para esse dia um pequeno passeio de barco em uma lagoa vizinha.

O passeio foi lindo, mas a notícia da nova extensão da guerra nos abatia, como um pesadelo, e paralisava a alegria. Aquilo não podia dar certo.

Pensávamos em Napoleão; pensávamos nas vastíssimas dimensões da Rússia, nas quais a invasão alemã devia, em algum ponto, se dispesar. Em breve os efeitos apareceram: chegavam grandes levas de soldados, a maioria terrivelmente ferida; precisava-se, agora, de toda a capacidade do hospital militar.

Todas as casas disponíveis, também aquela em Sparz, foram ocupadas.

Os seminaristas provenientes de outros lugares (praticamente todos) tiveram que procurar alojamento em casas particulares. Meu irmão e eu voltamos definitivamente para casa. Agora, porém, era também evidente que a guerra ainda demoraria muito, e ela se aproximava cada vez mais ameaçadoramente de nossa vida.  Meu irmão tinha 17 anos de idade; eu, 14.

Talvez eu fosse poupado, mas podia-se prever que meu irmão não escaparia.

De fato, no verão de 1942 ele foi convocado para o treinamento básico da infantaria; no outono seguiu a convocação para o exército, onde ele foi colocado no Serviço de Informação, como telegrafista.

Depois de uma permanência na França, na Holanda e na Tchecoslováquia, ele foi mandado para a frente italiana, onde foi ferido. Assim, ele veio parar, afortunadamente, no seminário de Traunstein, lugar de tantos anos agradáveis para ele, agora hospital militar. Depois de curado, ele teve que voltar para a frente na Itália.

Quanto a mim, aguardava-me ainda – apesar daquele sinistro contexto histórico- um belo ano em casa e no seminário de Traunstein.

Depois continuamos.

Fonte: Lembranças de Minha Vida.

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