III. Da Mortificação das Paixões
As paixões, no sentido filosófico do termo, não são necessária e absolutamente más: são forças vivas, muitas vezes impetuosas, que se podem utilizar para o bem como para o mal, contanto que as saibamas disciplinar e orientar para um fim nobre. Mas, na linguagem popular e em certos autores espirituais, emprega-se esta palavra em sentido pejorativo, para designar as paixões más.
Vamos pois: 1 - recordar as principais noções psicológicas sabre as paixões; 2 - indicar as seus bons e maus efeitos, 3 - traçar regras para o seu bom uso.
A psicologia das paixões
Não fazemos aqui mais que relembrar o que se expõe mais longamente na Psicologia.
1 - Noção. As paixões são movimentos impetuosos do apetite sensitivo para o bem sensível com repercussão mais ou menos forte sobre o organismo.
a) Na base da paixão, há pois, um certo conhecimentao, ao menos sensível, dum bem esperado ou adquirido ou dum mal contrário a este bem; deste conhecimento é que brotam os movimentos do apetite sensitivo.
b) Estes movimentos são impetuosos e distinguem-se assim dos estados afetivos agradáveis ou desagradáveis que são calmos, tranqüilos, sem aquele ardor, aquela veemêncía que há nas paixões.
c) Precisamente porque são impetuosos e atuam fortemente sobre o apetite sensitivo, é que têm repercussão até no organismo físico, por causa da estreita união entre o corpo e a alma. Assim, a cólera faz afluir o sangue ao cérebro e distende os nervos, o medo faz empalidecer, o amor dilata a coração, o temor cantrai-a. Nem em todos, porém, se apresentam no mesmo grau estes efeitos fisiológicos, que dependem do temperamento de cada um e da intensidade da paixão, bem como do domínio que cada qual adquire sobre si mesmo.
Diferem, pois, as paixões dos sentimentos, que são movimentos da vontade, e, por conseguinte, supõem conhecimento da inteligência e, com serem fortes, não têm a violência das paixões. Assim é que há amor-paixão e amor-sentimento, temor passional e temor intelectual. - Acrescentemos que no homem, animal racional, as paixões e os sentimentos se combinam muitas vezes, quase sempre, em doses variadíssimas, e que é pela vontade, auxiliada pela graça, que chegamos a transformar em nobres sentimentos as paixões mais ardentes, subordinando estas àqueles.
2 - O seu número. Enumeram-se geralmente onze paixões, que derivam todas do amor, como excelentemente demonstra Bassuet «As nossas demais paixões referem-se todas unicamente ao amor que a todos encerra e excita».
1) O amor é a paixão de se unir a uma pessoa ou de possuir uma coisa que agrada.
2) O ódio é a paixão de afastar de nós qualquer coisa que nos desagrada; nasce do amor, neste sentido que odiamos o que se opõe ao que amamos. Assim, por exemplo, eu não odeio a doença, senão porque amo a saúde; não odeio uma pessoa, senão porque ela me põe algum abstáculo à posse do que amar.
3) O desejo consiste em procurar o bem ausente, e nasce de amar-mos esse bem.
4) A aversão (ou fuga) leva-nos a afastar o mal que se avizinha de nós.
5) A alegria não é mais que a fruição do bem presente.
6) A tristeza, pelo contrário, aflige-se e desvia-se do mal presente.
7)A audácia (ousadia ou coragem) esforça-se por se unir ao objeto amado, cuja aquisição é dificultosa.
8) O temor impele-nos a fugir dum mal difícil de evitar.
9) A esperança tende com ardor para o abjeto amado, cuja aquisição é possível, se bem que dificultosa.
10) O desespero nasce na alma, quando a aquisição do objeto amado parece impossível.
11) A cólera repele violentamente a que nos faz mal e excita o desejo da vingança.
As seis primeiras paixões, que têm origem no apetite concupiscível, são comumente chamadas pelas modernas paixões de gozo; as outras cinco, que se referem ao apetite irascível, denominam-se paixões combativas.
Os efeitos das Paixões
Os Estóicos pretendiam que as paixões são radicalmente más e que, por conseguinte, devem ser suprimidas; os Epicureus divinizam as paixões e proclamam a altas vozes que é um dever segui-las. É o que os nossos modernos epicuristas chamam: viver a sua vida. O Cristianismo conserva o meio entre esses dois excessos: nada do que Deus pôs na natureza humana é mau. O próprio Cristo Senhor Nosso teve paixões bem ordenadas: amou não somente com a vontade, senão também com o coração e chorou sobre Lázaro e sobre Jerusalém, a infiel; deixou-se possuir duma santa cólera, sofreu o temor, a tristeza, o tédio; mas soube conservar essas paixões com o império da vontade e subordiná-las a Deus. Quando, pelo contrário, as paixões são desordenadas, produzem os mais perniciosos efeitos; é preciso, pois, mortificá-Ias, discipliná-las.
Efeitos das paixões desordenadas. Chamam-se desordenadas as paixões que tendem para um bem sensível proibido, ou até mesmo para um bem permitido, mas com demasiada sofreguidão e sem referir a Deus.
Ora, estas paixões desordenadas:
A) Cegam a Alma, lançando-se para o seu objeto com impetuosidade, consultar a razão, deixando-se guiar pelo instinto ou pelo prazer. Ora, há um elemento perturbador que tende a falsear o juízo e a obscurecer a reta razão. Como o apetite sensitivo é cego, por natureza, se a alma se guiar por ele, cega-se a si mesma: em vez de se deixar conduzir pelo dever, deixa-se fascinar pelo prazer do momento. É como uma nuvem que a impede de ver a verdade; obcecada pela poeira que as paixões levantam, a alma já não vê claramente a vontade divina nem o dever que se lhe impõe de ser apta para julgar retamente as coisas.
B) Fatigam a Alma e fazem Sofrer
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1- As paixões, diz São João da Cruz, ”são como rapazitos inquietos e descontentadiços, que sempre estão pedindo à mãe ora isto, ora aquilo, e não acabam de ficar satisfeitos. E assim como se cansa e fatiga o que cava por cobiça o tesouro, assim de cansa e fatiga a alma por conseguir o que seus apetites lhe pedem; e, ainda que o consiga por fim, sempre se cansa, porque nunca se satisfaz…E cansa-se e aflige-se a alma seus apetites, porque é ferida, agitada e perturbada por eles, como a água pelos ventos”
2- Daqui um sofrimento tanto mais intenso quanto mais vivas são as paixões: porque elas atormentam a pobre alma, até serem contentadas, e, como o apetite vem com o comer, reclamam as paixões cada vez mais; se a consciência protesta, impacientam-se, agitam-se, solicitam a vontade para que ceda aos seus caprichos que incenssantemente renascem: é tortura inexprímível
c) Enfraquecem a Vontade. Solicitada em sentidos diversos por essas paixões rebeldes, vê-se forçada a vontade a dispersar as próprias forças, que por isso mesmo vão enfraquecendo. Tudo o que cede às paixões, aumenta nelas as exigências e diminui em si as energias. Semelhantes às gameleiras inúteis e vorazes que brotam do tronco duma árvore, os apetites que se não dominam, vão-se desenvolvendo e roubando força à alma, como os rebentos parasitas à árvore. E não tardará o momento em que alma enfraquecida caia no relaxamento e na tibieza, disposta a todas as capitulações.
d) Maculam a alma. Quando esta, cedendo às paixões, se une às criaturas abate-se ao nível delas e contrai a sua malícia e as suas manchas; em vez de ser imagem fiel de Deus, torna-se imagem das coisas a que se apega; grãos de pó, manchas de lodo vêm embarciar-Ihe a beleza e opor-se à união perfeita com Deus. «Um só apetite desordenado, diz São João da Cruz , ainda quando não seja de matéria de pecado mortal, basta para pôr uma alma tão escura, manchada e feia que de modo nenhum pode convir com Deus em qualquer união (íntima), até dele se purificar. Qual será, pois, a fealdade da que de todo está desordenada em suas próprias paixões e entregue a seus apetites, e quão distanciada estará da pureza de Deus! Não se pode explicar com palavras, nem ainda campreender-se com o entendimento a variedade de imundície que a variedade de apetites causam na alma ... ». Cada apetite depõe, a seu modo, a sua parte especial de impureza e fealdade na alma.
Conclusão.
Quem quiser, pois, chegar à união com Deus, tem que mortificar todas as paixões, ainda as mais pequenas, enquanto são voluntárias e desordenadas. É que a união perfeita supõe que em nós não há nada contrário à vontade de Deus, nenhum apego voluntário à criatura e a nós mesmos. Tanto que, de propósito deliberado, nos deixamos extraviar por qualquer paixão, deixa de haver união perfeita entre a nossa vontade e a de Deus. lsto é sobretudo verdade das paixões ou apegos habituais, que paralisam a vontade, até mesmo quando são leves. É abservação de São João da Cruz «que a avezinha esteja presa a um fio delgado ou grossa, pouco importa: não lhe será possível voar, senão depois de o haver quebrado».
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