quarta-feira, 6 de julho de 2011

A Vida da Graça - do organismo da vida cristã



A Vida Espiritual - Explicada e Comentada - de Adolfh Tanquerey

As três divinas Pessoas, que habitam o santuário da nossa alma comprazem-se a enriquecer de dons sobrenaturais, e comunicam-nos vida semelhante à sua, que se chama vida da graça ou vida deiforme.
Ora, em qualquer vida há um tríplice elemento: um princípio vital, que é, por assim dizer, a fonte da vida; faculdades, que permitem produzir atos vitais, enfim, que são os produtos dessas faculdades e contribuem para o seu desenvolvimento.

Na ordem sobrenatural, o Deus, que em nós vive, produz em nossas almas esses três elementos:

A- Comunica-nos, primeiro, a graça habitual ou santificante, que desempenha em papel de princípio vital sobrenatural: diviniza, por assim dizer, a própria substância da nossa alma, tornando-a apta, posto que remotamente, para a visão beatífica e para os atos que a preparam.

B- Desta graça derivam as virtudes infusas e os dons do Espírito Santo, que aperfeiçoam as nossas faculdades e nos dão o poder imediato de praticar atos deiformes, sobrenaturais e meritórios.

C- Para pôr em movimento estas faculdades, concede-nos graças atuais que nos iluminam a inteligência, fortificam a vontade e ajudam a praticar atos e a aumentar assim o capital de graça habitual que nos foi concedido.

Esta vida da graça, se bem que distinta da vida natural, não lhe é simplesmente sobreposta, senão que por completo a penetra, transforma e diviniza. Assimila tudo quanto há de bom em nossa natureza, educação, hábitos adquiridos, aperfeiçoa e sobrenaturaliza todos estes elementos, orientando-os para o último fim, isto é, para a posse de Deus, pela visão beatífica e amor que a acompanha. É esta a esta vida sobrenatural que compete dirigir a vida natural, em virtude do princípio geral, que os seres inferiores são subordinados aos superiores. É que, na verdade, não pode durar nem se desenvolver-se, se não domina e conserva sob a sua influência os atos da inteligência, da vontade e das outras faculdades; e com isso não destrói nem diminui a natureza, antes a exalta e aperfeiçoa

Da Graça Habitual ou Santificante

Deus Nosso Senhor, querendo, na sua infinita bondade, elevar-nos até Si, na medida em que o permite a nossa fraca natureza, dá- nos um princípio vital sobrenatural, deiforme: é a graça habitual, graça que se chama criada, por oposição à graça incriada, que consiste na habitação do Espírito Santo em nós. Esta graça torna-nos semelhantes a Deus e une-nos a Ele duma maneira estreitíssima: «Est autem haec c catio, deo quaedam, quoad fieri potest, assimila tio unioque» .

Definição.

Define-se ordinariamente a graça habitual: uma qualidade sobrenatural, inerente à nossa alma, que nos faz particípar, dum modo real, formal, mas acidental, da natureza e vida divinas.

a) É, pois, uma realidade da ordem sobrenatural, não porém Substância, pois que substância nenhuma criada pode ser sobrenatural; é uma maneira de ser, um estado da alma, uma qualidade inerente à substância da nossa alma, que a transforma e eleva acima de todos os seres naturais, ainda os mais perfeitos; qualidade permanente, de sua natureza, que fica em nós enquanto a não expelimos da alma cometendo voluntariamente algum pecado mortal.

«É, diz o Cardeal Mercier , apoiando-se em Bossuet, essa qualidade espiritual que Jesus difunde em nossas almas; que penetra o mais íntimo da nossa substância; que se imprime no mais secreto de nos almas e se derrama (pelas virtudes) em todas as potências e faculdades da alma; que, tomando posse dela interiormente, a torna pura e agradável aos olhos deste divino Salvador e a faz seu santuário, seu templo, seu tabernáculo, enfim seu lugar de delícias».

b) Esta qualidade torna-nos, segundo a enérgica expressão de São Pedro, participantes da natureza divina, divinae consortes naturae ; faz-nos entrar, diz São Paulo, em comunicação com o Espírito Santo, comunicatio Sancti Spiritus ; em sociedade com o Pai e o Filho, ajunta São João. É claro que não nos faz iguais a Deus, mas unicamente seres deiformes, semelhantes a Deus; dá-nos, não a vida divina em si mesma, que é essencialmente incomunicável, senão uma vida semelhante à de Deus.

1) A vida própria de Deus é ver-se a si mesmo diretamente e amar-se infinitamente. Criatura alguma, por mais perfeita que se suponha, pode por si mesma contemplar a essência divina «que habita uma luz inacessível, lucem inhabitat inacessibilem» . Mas Deus, por um privilégio inteiramente gratuito, chama o homem a contemplar esta divina essência no céu; e, como este por si mesmo é disso incapaz, Deus eleva, dilata, fortifica a inteligência pelo lume da glória.

Então, diz-no-lo São João, seremos Semelhantes a Deus, porque O veremos como Ele é em si mesmo: «Similes erimus, quoniam videbimus eum sicut esb". Veremos, acrescenta São Paulo, não já através do espelho das criaturas, senão face a face, sem intermédio, sem nuvem, com uma claridade luminosa: «Videmus nunc per speculum. in aenigmate, tunc autem facie ad faciem" . E assim participaremos, que de modo finito, da vida própria de Deus, pois que O conheceremos como Ele se conhece e o amaremos como Ele se ama a si mesmo. O que os teólogos explicam, dizendo que a essência divina virá unir-se ao mais íntimo da nossa alma, e nos servirá de espécie impressa, para nos permitir vê-la sem intermédio algum criado, sem imagem alguma.

2) Ora a graça habitual é já uma preparação para a visão beatífica e um como antegosto desse favor, praelibatio visionis beatificae; é o botão que já contém flor, se bem que esta não haja de desabrochar senão mais tarde; é, pois, do mesmo gênero que a própria visão beatífica e participa da sua natureza.

Tentemos uma comparação, por imperfeita que seja. Eu posso conhecer um artista de três maneiras: pelo estudo das suas obras, - pelo retrato que dele me traça um dos seus amigos íntimos, - enfim pelas relações diretas que tenho com ele. O primeiro destes conhecimentos é o que temos de Deus pela vista das suas obras, conhecimento indutivo, bem imperfeito, pois que as obras, apesar de manifestarem a sua sabedoria e poder nada me dizem da sua vida interior.

O segundo corresponde bastante bem ao conhecimento que nos dá a fé: fundado no testemunho dos escritores sagrados, é sobretudo no do Filho de Deus, creio o que a Deus apraz revelar-me, não já somente sobre as obras e atributos, mas sobre a sua vida íntima; creio que de toda a eternidade o Pai gera um Verbo que é seu Filho, que o Pai O ama e é dele amado, e que deste amor recíproco procede o Espírito Santo. Certo que eu não compreendo, não vejo sobretudo, mas creio com certeza inabalável, e esta fé faz-me participar por modo velado e obscuro, mas real, de conhecimento que Deus tem de si mesmo.

Só mais tarde, pela visão beatífca, é que se realizará o terceiro modo de conhecimento; vê-se, porém, sem dificuldade que o segundo é, em substância da mesma natureza que este último, e sem dúvida muito superior ao conhecimento racional

c) Esta participação da vida divina é, não simplesmente virtual senão formal. Uma participação virtual não nos faz possuir uma qualidade senão de maneira diversa daquela que se encontra na causa principal, assim, a razão é uma participação virtual da inteligência divina, porque nos faz conhecer a verdade, mas de modo bem diferente do conhecimento que dela tem Deus. Não assim a visão beatífica, e, guardada toda a proporção, a fé: estas fazem-nos conhecer a Deus como Ele se conhece a si mesmo, não sem dúvida no mesmo grau, mas da mesma maneira.

d) Esta participação não é substancial, senão acidental. Assim se distingue da geração do Verbo, que recebe toda a substância do Pai, bem como da união hipostática, que é uma união substancial da natureza humana e da natureza divina na única Pessoa do Verbo: nós, efetivamente, conservamos a nossa personalidade, e a nossa únião com Deus não é substancial.

É esta a doutrina de Santo Tomás : «Sendo a graça muito superior à natureza humana, não pode ser nem uma substância, nem a forma substancial da alma, não pode ser senão a sua forma acidental». E, para explicar o seu pensamento, acrescenta que o que está substancialmente em Deus nos é dado acidentalmente e nos faz participar da sua divina bondade: «Id eniIL quod substantialiter est in Deo, acidentaliter fit in anima participante divinam bonita tem, ut de scientia patet».

Com estas restrições, evita-se o cair no panteísmo, e forma-se, não obstante, uma idéia altíssima da graça que nos aparece com uma divina semelhança impressa por Deus em nossa alma: «faciamus hominem ac imaginem et similitudinem nostram»

Para nos fazerem compreender esta divina semelhança, empregam os santos Padres diversas comparações:

1 - A nossa alma, dizem, é uma imagem viva da Santíssima Trindade uma espécie de retrato em miniatura, pois que o próprio Espírito se vem imprimir em nós, como um sinete sobre cera branda, e a sua divina semelhança. Daqui concluem que a alma em estado de graça é duma beleza arrebatadora, pois que o artista, que nela pinta esta imagem, é infinitamente perfeito, visto ser o próprio Deus: "Pictus es ergo, o homo, et pictus es a Domino Deo tuo. Bonum habes artificem et pictorem» E daqui inferem com razão que, longe de destruirmos ou mancharmos esta imagem, a devemos tornar cada dia mais semelhante ao original. Ou então comparam ainda a nossa alma a esses corpos transparentes que, recebendo a luz do sol, são como penetrados por ele e adquir em um brilho incomparável que em seguida difundem a nossa alma, semelhante a um globo de cristal iluminado pelo sol, recebe a luz divina, resplandece com vivíssimo clarão e o reflete os objetos que a rodeiam.

Para mostrarem que esta semelhança não fica à superfície, se não que penetra até o mais íntimo da nossa alma, recorrem à comparação do fogo. Assim como, dizem eles, uma barra de ferro, metida em água ardente, adquire bem depressa o brilho, o calor e maleabilidade do fogo, assim a nossa alma, mergulhada na fornalha do amor divino, ali se desembaraça das escórias, tornando-se brilhante, ardente e dócil às divinas inspirações.

Um autor contemporâneo, querendo exprimir a idéia de que a graça é uma vida nova, compara-a a um enxerto divino, inserido na árvore silvestre da nossa natureza, o qual se combina com a nossa alma para nela constituir um princípio vital novo, e, por isso mesmo, uma vida muito superior. Mas, assim como o enxerto não confere à árvore selvagem toda a vida da espécie a quem o foram buscar, senão tão somente uma ou outra das suas propriedades vitais, assim a graça santificante não nos dá toda a natureza de Deus, alguma coisa da sua vida, que constitui para nós uma vida nova; participamos, pois, da vida divina, mas não a possuímos na sua plenitude. Esta divina semelhança prepara evidentemente a nossa alma para uma união íntima com a adorável Trindade que nela habita.

(Depois veremos: União entre a nossa alma e Deus)

Veja também: A vida da Graça um tesouro a adquirir:

Queda e Castigo - a Redenção e a Natureza da Graça -

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