quarta-feira, 10 de agosto de 2011

A vida da Graça - da parte do Homem na vida cristã



A Vida Espiritual - Explicada e Comentada - de Adolfh Tanquerey

É evidente que, se Deus operou tantas maravilhas, para nos comunicar uma participação da Sua vida, nós devemos, da nossa parte, corresponder às suas amorosas antecipações, aceitar com reconhecimento essa vida, cultivá-la e preparar-nos assim para essa bem-aventurança eterna que coroa dos nossos esforços na terra.

A gratidão faz-nos disso um dever; é que, de fato, não há melhor meio de agradecer um benefício que utiliza-lo para o fim para que nos foi concedido. O nosso interesse espiritual exige-o: porque Deus nos recompensará segundo os nossos méritos, e a glória no céu corresponderá aos graus de graça que houvermos conquistado pelas nossas boas obras:«Unusquisque autem propriam mercedem accipiet secundum, suum laborem» ; assim como, pelo contrário, se verá obrigado a castigar severamente aqueles que, resistindo voluntariamente as suas divinas finezas, tiverem abusado da graça; porquanto, como diz o apóstolo, «a terra que, abeberada pela chuva que cai amiúde sobre a erva útil àqueles por quem é cultivada, tem parte na bênção de Deus; mas, se não produz mais que espinhos e cardos é julgada de má qualidade e perto de ser amaldiçoada: Terra enim saepe venientem super se bibens imbrem et generans herbam opportunam illis a quibus colitur, accipit benedictionem a Deo: proferens autem spinas ac tributos, reproba est et maledicto proxima» .

É indubitável que Deus, que nos criou livres, respeita a nossa liberdade, e não nos santificará contra a nossa vontade; mas não cessa de nos exortar a que nos aproveitemos das graças que nos outorga tão liberalmente «Adiuvantes autem exhortamur ne in vacuum gratiam Dei recipiatis : Exortamo-vos a que não recebais a graça de Deus em vão". Ora, para correspondermos a essa graça, devemos antes de tudo praticar aquelas grandes devoções que expusemos no artigo precedente: devoção à Santíssima Trindade, devoção ao Verbo Encarnado, devoção à Santíssima Virgem, aos Anjos e aos Santos.

Nelas encontraremos, efetivamente, o mais eficaz dos motivos, para nos darmos completamente a Deus, em união com Jesus, e com a proteção dos nossos poderosos intercessores; nelas encontraremos outrossim modelos de santidade que nos traçarão o caminho que devemos trilhar, e mais ainda energias sobrenaturais que nos permitirão aproximar-nos cada dia do ideal de santidade proposto à nossa imitação. - Notemos aqui, porém, que expusemos essas devoções na sua ordem ontológica ou de dignidade. Na prática não é a devoção à Santíssima Trindade a que se exercita em primeiro lugar; começamos em geral pela devoção a Nosso Senhor Jesus Cristo e à Santíssima Virgem, e só mais tarde é que nos elevamos à Santíssima Trindade.

Mas não basta. É nos indispensável utilizar todo esse organismo sobrenatural de que somos dotados e aperfeiçoá-lo, a despeito dos obstáculos de dentro e de fora, que se opõem ao seu desenvolvimento.

1 - Visto como permanece em nós a tríplice concupiscência, que incessantemente tende para o mal e é atiçada pelo mundo e pelo demônio, o primeiro passo será combatê-la energicamente, bem como os seus poderosos auxiliares.

2 - Com aquele organismo sobrenatural que nos foi dado para produzir atos deiforrnes, meritórios da vida eterna devem multiplicar os nossos méritos.

3 - Como aprouve enfim à Bondade divina instituir Sacramentos, que produzem em nós a graça segundo a medida da nossa cooperação, é necessário aproximar-nos deles com disposições, quanto possível, perfeitas. Por esse meio conservaremos em nós a vida da graça, mais ainda, fá-Ia-emos crescer indefinidamente.

I. Da luta contra os Inimigos Espirituais:
Estes inimigos são a concupiscência, o mundo e o demônio: a concuspiscência, inimigo interior que trazemos sempre conosco; o mundo e demônio, inimigos exteriores, que atiçam o fogo da concupiscência.
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I. Luta contra a concupiscência
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São João descreveu a concupiscência neste texto célebre: «Omne quod est in mundo concupiscentia carnis est et concupiscentia oculorum et superbia vitae» O que vamos dizer será a explicação deste texto.

1. Concupiscência da Carne

A concupiscência da carne é o amor desordenado dos prazeres dos sentidos.

A) O mal. O prazer não é mau em si; Deus permite-o, ordenando-o a fim superior, o bem honesto; se liga o prazer a certos atos bons, é para facilitar e nos atrair assim ao cumprimento do dever. Gozar o prazer com moderação, referindo-o ao seu fim, que é o bem moral e sobrenatural, não é mal; é até um ato bom, pois que tende a um fim bom, que em última análise é Deus. Querer, porém, o prazer independentemente desse fim que legitima, querê-lo, por conseguinte, temente desse fim no qual se para, é desordem, pois é ir contra a ordem sapientíssima estabelecida por Deus. E esta desordem arrasta consigo outra: quem opera pelo prazer, fica exposto a amá-Io com excesso, porque já não se guia pelo fim que impõe limites à sede imoderada do prazer que existe em cada um de nós. Assim, por exemplo, quis Deus na sua sabedoria que um certo prazer andasse inerente à comida, para nos estimular a sustentar as força do corpo.

Mas, como bem diz Bossuet, «os homens ingratos e carnais tomaram ocasião deste deleite, para se afeiçoarem ao seu corpo mais que a Deus, que o havia feito ... O prazer do alimento cativa-os: em lugar de comerem para viver, parece como dizia um antigo, e depois dele Santo Agostinho, que não vivem senão para comer. Ainda aqueles sabem regular os seus apetites, e são levados à mesa pela necessidade da natureza, iludidos pelo prazer, e arrastados mais longe do que convém pelos seus engodos, são transportados para além dos justos limites; deixam-se insensivelmente ganhar pelo apetite, e não crêem jamais haver satisfeito inteiramente à necessidade, enquanto o comer e o beber lhes lisonjeiam a gosto». Daqui, excessos no comer e beber, opostos à temperança. E que dizer do prazer, ainda mais perigoso, da volúpia, «dessa profunda e vergonhosa chaga da natureza, dessa concupiscência que liga a alma ao corpo por laços tão amaviosos e violentos, de que tanto nos custa desprender-nos e causa também no gênero humano tão espantosas desordens?»

Este prazer sensual é tanto mais perigoso quanto é certo que se encontra espalhado por todo o corpo. A vista é por ele infeccionada, visto ser pelos olhos que começa a sorver o veneno do amor sensual. Os ouvidos são por ele infectados, quando, por meio de conversas perigosas e cantos eivados de moleza, se acendem ou se alimentam as chamas do amor impuro e essa disposição secreta que temos para os gozos sensuais.

E o mesmo se diga dos outros sentidos. - O que aumenta o perigo, é que todos esses prazeres sensuais se excitam uns aos outros; aqueles que seríamos levados a ter por mais inocentes, se não estamos continuamente de sobreaviso, preparam o caminho aos mais culpáveis. Há até mesmo uma certa moleza e delicadeza espalhada em todo o corpo que, levando-nos a buscar descanso no sensível, o despertam e lhe mantêm a viveza. Ama-se o corpo com uma paixão que faz esquecer a alma; um cuidado excessivo da saúde faz que se lisonjeie o corpo em tudo, e todos estes sentimentos ao outros tantos ramos da concupiscência

B) O remédio para tão grande mal é a mortificação do prazer sensual; porquanto, diz São Paulo: «Os que são de Cristo crucificaram a sua própria carne com os seus vícios e concupiscências: Qui autem sunt Christi, carnem suam crucifixerunt cum vitiis et concupiscentiis» . Ora crucificar a carne, diz M. Olier «é ligar, garrotar, sufocar interiormente todos os desejos impuros e desregrados, que sentimos em nossa carne»; é também mortificar os sentidos exteriores que nos põem em comunicação com os objetos de fora e excitam em nós desejos perigosos.

O motivo fundamental, que nos obriga a praticar esta mortificação, são as promessas do nosso batismo. Pelo batismo, que nos faz morrer ao pecado e nos incorpora em Cristo, somos obrigados a praticar esta mortificação do prazer sensual; porquanto, «segundo São Paulo, não somos já devedores da carne, para vivermos segundo a carne, mas somos obrigados a viver segundo o espírito; e, se vivemos pelo espírito, andemos segundo o espírito, que nos imprime no coração a inclinação para a cruz e a força de a levar»

O batismo de imersão pelo seu simbolismo, mostra-nos a verdade desta doutrina: imerso na água, o catecúmeno morre ali ao pecado e a suas causas, e, quando dela é retirado participa duma vida nova, a vida de Jesus ressuscitada. É a doutrina de São Paulo «Mortos ao pecado, como poderíamos ainda viver no pecado? Ignorais porventura que todos quantos fomos batizados em Cristo Jesus, foi na sua morte que fomos batizados? Porquanto, fomos juntamente sepultados com Ele pelo batismo em sua morte, para que, assim como Cristo ressurgiu dos mortos, pela glória do Pai, assim também nós andemos numa vida nova».

Assim pois a imersão batismal significa a morte ao pecado; e a obrigação de lutar contra a concupiscência que tende ao pecado; e a saída da água exprime a vida nova pela qual participamos da vida ressuscitada do Salvador O batismo obriga-nos, pois, a mortificar a concupiscência que fica em nós, e a imitar o Nosso Senhor Jesus Cristo que, crucificando a sua carne, nos mereceu a graça de crucificar a nossa. Os cravos, com que a crucificamos, são precisamente os diferentes atos de mortificação que praticamos. Tão imperiosa é esta obrigação de mortificar o prazer que daqui depende a nossa salvação e vida espiritual: "Porque, se viverdes segundo a carne, morrereis, mas, se pelo Espírito mortificardes as obras da carne, vivereis: Si enim secundum carnem vixeritis, moriemini; si autem spiritu facta carnis mortificaveritis, vivetis".

Para ser completa a vitória, não basta renunciar aos prazeres maus (o que é de preceito); é mister ainda sacrificar os prazeres perigosos que conduzem quase infalivelmente ao pecado, em virtude do princípio: «qui amat periculum, in ilJo peribit»; mais ainda, é necessário privar-se de alguns dos prazeres lícitos, a fim de robustecer assim a vontade contra a sedução do prazer vedado: é que, efetivamente, quem quer que saboreia sem restrição todos os deleites permitidos, está bem perto de resvalar aos que o não são.

A concupiscência dos olhos (curiosidade e avareza)

A) O mal.

A concupiscência dos olhos compreende duas coisas: a curiosidade doentia e o amor desordenado dos bens da terra.

a) A curiosidade, de que se trata, é o desejo imoderado de ver, ouvir, conhecer o que se passa no mundo, por exemplo, as secretas intrigas que nele se urdem, não para daí tirar algum proveito espiritual, mas para gozar desse frívolo conhecimento. Estende-se aos séculos passados, quando revolvemos a história, não para colher nela exemplos proveitosos à vida humana, senão para apascentar a imaginação com todos os objetos que lhe prazem. Abraça mormente todas as falsas ciências divinatórias pelas quais se pretende esquadrinhar as coisas secretas ou futuras, cujo conhecimento Deus para si reservou: «é, pois, usurpar os direitos de Deus, é destruir a confiança com que nos devemos entregar à sua vontade»

1. Esta curiosidade estende-se até às ciências verdadeiras e úteis, quando um se lhes entrega com demasia, ou fora de tempo; faz-nos então sacrificar obrigações mais importantes, como sucede aos que lêem toda a qualidade de romances, comédias ou poesias. «Porquanto, tudo isso não é mais que uma intemperança, uma doença, um desregramento do espírito, um entibiamento do coração, um miserável cativeiro, que não nos deixa tempo de pensar em nós, enfim uma fonte de erros»

b) A segunda forma desta concupiscência é o amor desordenado do dinheiro; umas vezes considera-se como instrumento para adquirir outros bens, por exemplo, prazeres ou honras; outras vezes apega-se o coração ao dinheiro por ele mesmo, para o contemplar, apalpar e encontrar na sua posse uma certa segurança para o futuro: é a avareza propriamente dita. Num e noutro caso expõe-se o homem a cometer muitos pecados; porque este desejo imoderado é fonte de muitas fraudes e injustiças.

. B) O remédio.

a) Para combater a vã curiosidade, importa recordar que o que não é eterno é indigno de fixar e reter a atenção de seres imortais como nós. A figura deste mundo passa, não há senão uma coisa que permance: Deus e o céu, que é a eterna posse de Deus. Não devemos, pois, tomar interesse a valer senão pelas coisas eternas; porquanto, o que não é eterno, não é nada: quod aeternum non est, nihil est. É certo que os acontecimentos presentes, como os dos séculos passados, podem e devem interessar-nos, mas somente na medida em que contribuem para a glória de Deus ou salvação dos homens. Quando Deus criou o mundo e tudo quanto existe, não teve senão um fim: comunicar a Sua vida divina às criaturas inteligentes, aos Anjos e aos homens, e recrutar eleitos. Tudo o mais é acessório, e só deve ser estudado como meios para Deus e para o céu .

No que diz respeito ao amor desordenado dos bens da terra, é mister recordar que as riquezas não são fim, senão meio que nos dá a Providência para acudir às nossas necessidades; que Deus é sempre soberano Senhor das riquezas, que nós não somos afinal mais que administradores e que teremos de dar conta do seu uso: «redde rationem villicati-onis tuae É, pois, consumada prudência consagrar uma larga parte do superfluo a esmolas e boas obras: é acomodar-se aos desígnios de Deus que quer que os ricos sejam, por asssim dizer, os ecônomos dos pobres; é colocar no banco do céu um depósito, que nos será restituído centuplicamente quando entrarmos na eternidade: «Entesourai antes para vós tesouros onde nem ferrugem nem a traça destroem, e onde os ladrões não desenterram nem furtam: thesaurizate autem vobis thesaurus in caelo, ubi neque aerugo neque tinea demolitur, et ubi fures non effodiunt nec furantur

E é este o meio de desapegar nossos corações dos bens terrestres para os elevar até Deus: «Porquanto, acrescenta Nosso Senhor, onde está o teu tesouro, aí está o teu coração: «Ubi enim est thesaurus tuus, ibi est et cot tuum.» . Busquemos, pois, antes de tudo o reino de Deus, a santidade e o demais nos virá por acréscimo. Para o homem alcançar a perfeição, tem que fazer mais ainda; tem que praticar a pobreza evangélica: «Bem aventurados os pobres de espírito: Beati pauperes spiritu». O que de três maneiras se pode fazer, segundo as inclinações e possibilidades de cada um:

1 - Vender todos os seus bens e dá-los aos pobres: «Vendite quae possidetis et date eleemosynam»
2 - Colocar tudo em comum, como se pratica em certas Congregações;
3 - Conservar a propriedade e despojar-se do uso, não despendendo nada senão conforme o parecer de um prudente diretor.

Como quer que seja, o coração deve estar desprendido das riquezas, a fim de voar para Deus. É isto exatamente o que nos recomenda Bossuet: "Felizes os que, retirados humildemente na casa do Senhor se deleitam na nudez das suas pequeninas celas, e em todas as pobres alfaias de que têm necessidade nesta vida, que não é mais que uma sombra de morte, para em tudo isso não verem mais que a sua fraqueza e o jugo pesado com que o pecado os esmagou. Ditosas as Virgens sagradas, que não querem ser mais espetáculo do mundo, e desejariam esconder-se a si mesmas sob o véu sagrado que as envolve. Bendito o doce constrangimento a que se sujeitam os olhos, para não verem as vaidades, e dizerem com Davi : Afastai os meus olhos, a fim de as não verem! Ditosos aqueles que ficando, conforme o seu estado, no meio do mundo ... , não são por ele tocados, que passam por ele, sem se lhe apegarem ... que dizem com Ester sob o diadema: «Vós sabeis, Senhor, quanto eu desprezo este sinal de orgulho e tudo quanto pode servir à glória dos ímpios; e que vossa serva jamais se regozijou senão em vós unicamente, Deus de Israel».

Da soberba da vida

A) O mal.

«O orgulho, diz Bossuet , é uma depravação mais profunda: por ele o homem, entregue a si mesmo, considera-se como seu próprio Deus, pelo excesso do seu amor próprio». Esquecendo que Deus é o seu primeiro princípio e último fim, estima-se a si mesmo em excesso, aprecia as verdadeiras ou pretensas qualidades, como se foram suas, sem as referir a Deus. Daí esse espírito de independência ou de autonomia que o leva a subtrair-se à autoridade de Deus ou dos seus representantes; esse egoísmo que o inclina a operar para si mesmo como se fora o seu próprio fim: essa vã complacência que se deleita na própria excelência, como se Deus não fosse dela o autor; que se compraz em suas boas obras, como se elas não fossem, antes de tudo e principalmente, resultado da ação divina em nós; essa tendência a exagerar as próprias qualidades, a atribuir-se outras que não possui, a preferir-se aos demais, até por vezes a desprezá-los, como fazia o Fariseu.

A este orgulho vem juntar-se a vaidade, pela qual se busca desordenadamente a estima, a aprovação, o louvor dos outros. É o que se chama vanglória. Porquanto, como faz notar Bossuet , «se estes louvores são falsos ou injustos, que enorme é o meu erro em neles tanto me comprazer! E, se são verdadeiros, donde me vem esse outro erro, de me deleitar menos com a verdade que com o testemunho que lhe prestam os homens?»

Coisa estranha, na verdade! Mais nos desvelamos pela estima dos homens que pela virtude em si mesma, e mais humilhados 'nos sentimos de uma inadvertência pública que duma falta secreta. Quando este defeito se vem a assenhorear de alguém, não tarda em produzir outros: a jactância, que nos inclina a falar de nós mesmos, dos nossos triunfos; a ostentação que procurar atrair a atenção pública pelo luxo e fausto; a hipocrisia, que se mascara dos exteriores da virtude, sem se importar de a adquirir.

Os efeitos do orgulho são deploráveis: é o maior inimigo da perfeição.

1- Porque rouba a Deus a sua glória, e por isso mesmo nos priva de muitas graças e merecimentos, pois Deus não quer ser cúmplice da nossa soberba;
2 - É fonte de numerosos pecados: pecados de presunção, punidos com quedas lamentáveis e vícios odiosos; de desânimo, quando o orgulho vê que caiu tão baixo; de dissimulação, porque lhe custa confessar as suas desordens; de resistência aos superiores, de inveja e ciúme a respeito do próximo. etc.

O remédio é:

a) referir tudo a Deus, reconhecendo que Ele é o autor de todo bem e que, sendo o primeiro princípio das nossas ações, deve ser o seu último fim. É este o remédio que sugere São Paulo Que tens , que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te glorias, como se o não houvera recebido?Donde conclui que todas as nossas ações devem tender à glória de Deus. "Quer comais, quer bebais, quer façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus». E, para lhes dar mais valor, tenhamos cuidado de as fazer em nome, na virtude de Jesus Cristo. "Tudo que fazeis, por palavra ou por obra, fazei-o em nome do Senhor,dando por Ele graças ao Pai».

b)Como porém, a nossa natureza nos leva constantemente a buscar-nos a nós mesmos, é necessário para reagir contra esta tendência, lembrar-nos que de nós mesmos não somos mais que nada e pecado. Há em nós, sem dúvidas, boas qualidades naturais e sobrenaturais, que soberanamente devemos estimar e cultivar; mas, como estas qualidades vem de Deus, não é porventura a Deus que por causa delas devemos glorificar? Quando um artista saiu com uma obra-prima, a quem se devem os elogios? A tela ou ao seu autor?

Ora, de nós mesmos, não temos mais que o nada: «Eis o que éramos de toda a eternidade; e o ser, de que Deus nos revestiu, não é de nós, é de Deus: e, posto que nos tenha sido dado, não cessa contudo de ser ainda dom de Deus, pelo qual quer ser honrado».

Mais ainda: de nós mesmos somos pecado, neste sentido, que pela concupiscência tendemos para o pecado, de tal modo que, segundo Santo Agostinho, se não cometemos certos pecados, é à graça de Deus que o devemos: "Gratiae tuae deputo et quaecumque non feci mala. Quid enim non facere potui, qui etiam gratuitum facinun amavi?»

O que M. Olier explica assim: «O que vos posso dizer a este respeito, é que não há espécie de pecado que se possa conceber, não há imperfeição nem desordem, não há erro nem confusão, de que a carne não esteja repleta; de tal sorte que não há espécie de leviandade, não há espécie de loucura nem insensatez que a carne não fosse capaz de cometer a toda a hora».

É certo que a nossa natureza não está totalmente corrompida, como pretendia Lutero; pode fazer, com o concurso de Deus, natural ou sobrenatural, algum bem, e até faz muito bem, como se vê nos Santos; mas, como Deus fica sendo a sua causa primeira e principal é a Ele que por isso são devidas as graças.

Concluamos, pois, com Bossuet: "Não presumais de vós mesmos, porque isso é princípio de todo o pecado ... Não desejeis a glória dos homens, porque teríeis recebido a vossa recompensa, e não teríeis que esperar senão verdadeiros suplícios. Não vos glorifiqueis a vós mesmos: pois tudo quanto vos atribuís nas vossas boas obras, roubai-lo a Deus que é o seu autor, e pondes-vos em seu lugar. Não sacudais o jugo da disciplina do Senhor; não digais dentro de vós mesmos, como um soberbo orgulhoso: Não servirei; porque se não servis à justiça, sereis escravo do pecado e filho da morte. Não digais: Não estou manchado; e não creais que Deus tenha esquecido os vossos pecados, porque vós mesmos os esquecestes; porquanto o Senhor vos despertará, dizendo-vos: «Vede os vossos caminhos neste valezinho secreto: segui-vos por toda a parte e contei todos os vossos passos. Não resistais aos sábios conselhos e não vos arrebateis, quando vos repreendem: porque é o cúmulo do orgulho levantar-se contra a própria verdade, quando ela vos adverte, e recalcitrar contra a espora».

Procedendo desta maneira, seremos mais fortes para lutar contra o mundo, o segundo dos nossos inimigos espirituais

Luta contra a Mundo

O mundo, de que neste lugar se trata, não é o conjunto das pessoas que vivem na terra, entre as quais se encontram juntamente almas escolhidas e ímpios. É o complexo daqueles que são opostos a Jesus Cristo e escravos da tríplice concupiscência. São pois:

1 - Os incrédulos, hostis à religião, precisamente porque ela condena o seu orgulho, a sua sensualidade, a sua sede imoderada das riquezas;
2 - Os indiferentes, que não querem saber duma religião que os obrigue a sair da sua indolência;
3 - Os pecadores impenitentes, que amam o seu pecado, porque amam e não se querem desembaraçar dele;
4 - Os mundanos, que crêem e até praticam a religião, mas aliando-a ao amor do prazer, do luxo, do bem-estar, e que por vezes escandalizam seus irmãos, crentes ou incrédulos, fazendo-lhes dizer que a religião tem pouca influência sobre a vida moral. - Tal é o mundo que Jesus amaldiçoou por causa dos seus escândalos. «Vae mundo a scandalis"e do qual São João disse que estava todo inteiramente mergulhado no mal

Os perigos do mundo. O mundo, que penetra até nas famílias cristãs e ainda nas comunidades, pelas visitas que se fazem ou recebem, pelas correspondências, pela leitura dos livros ou dos jornais mundanos, é um grande obstáculo à salvação e perfeição; desperta e atiça em nós o fogo da concupiscência; seduz-nos e aterra-nos.

A - Seduz-nos pelas suas máximas, pelo estadear das suas vaidades, pelos seus exemplos perversos.

a) suas máximas, que estão em oposição direta com as máximas evangelicas. É com efeito o mundo elogia a felicidade dos ricos, dos fortes ou até dos violentos, dos filhos da fortuna, dos ambiciosos, dos que sabem gozar da vida. Com que eloqüência prega o amor do prazer: "Coroemo-nos de rosas, antes que elas murchem". Então, diz ele, não é um dever sagrado aproveitar a mocidade, gozar da vida? Há muitos outros que assim fazem, e Deus que é tão bom, não pode condenar a toda gente. - Ora! É preciso ganhar a vida, e, se fôssemos escrupulosos em questão de negócios, não chegaríamos nunca a enriquecer.

b) Pelo estadear das suas vaidades e dos seus prazeres: a maior parte das reuniões mundanas não têm por fim mais que lisonjear a curiosidade, a sensualidade e até mesmo a voluptuosidade. Para tornar o vício atraente, dissimula-se sob forma de divertimentos que se chamam honestos, mas não deixam de ser perigosos, como os vestidos decotados, as danças, algumas delas sobretudo que não parecem ter outro fim senão favorecer olhares lascivos e enlaces sensuais. E que dizer da maior parte das representações teatrais, dos espetáculos oferecidos ao público, dos livros licenciosos que expõem por toda a parte?

c) Os maus exemplos não vêm, infelizmente, senão aumentar o perigo; quando se vêem tantos jovens que se divertem, tantas pessoas casadas infiéis aos seus deveres, tantos comerciantes e homens de negócios que enriquecem por meios pouco escrupulosos, é forte a tentação de nos deixarmos arrastar a semelhantes desordens. - E depois, o mundo é tão indulgente para com as fraquezas humanas, que parece dar-lhes alento; um sedutor, é um homem galante; um financeiro, um comerciante que enriquece por meios pouco honestos, é um homem esperto: um livre pensador, é um homem sem preconceitos, que segue as luzes da sua consciência. Quantos se sentem alentados ao vício por apreciações tão benignas!

B) Quando nos não pode seduzir, trata o mundo de nos aterrar!

a) Por vezes, é uma verdadeira perseguição, organizada contra os crentes: privam-se da promoção, em certas repartições, os que cumprem publicamente os seus deveres religiosos, ou os que mandam os filhos a escolas católicas.

b) Outras vezes desviam-se da prática da religião os tímidos, metendo a riso os devotos, os tartufos, os ingênuos que acreditam em dogmas sediços, motejando das mães de família que persistem em vestir modestamente suas filhas, perguntando-lhes ironicamente se é assim que as esperam casar. E quantos, realmente, que vencidos do respeito humano, e mau grado os protestos da consciência, se deixam escravizar por essas modas tirânicas que já não respeitam o pudor!

c) em outras circunstâncias empregam-se ameaças: se fazeis assim alarde de vossa religião não há lugar para vós em nossos escritórios; se levais tão longe os melindres do pudor, é inútil vir às nossas salas; se sois tão escrupulosos, não vos posso empregar no meu serviço: é necessário proceder como toda a gente e enganar o público, para fazer dinheiro. E não há nada mais fácil do que deixar-se assim seduzir ou aterrar, pois que o mundo encontra um cúmplice em nosso próprio coração e no desejo natural que temos dos bons lugares, das honras, das riquezas.

O remédio

Para resistir a esta corrente perigosa, é necessário colocar-se corajosamente em frente da eternidade, e olhar o mundo com a luz da fé. Então nos aparecerá ele como inimigo de Jesus Cristo, que é preciso combater energicamente, para salvar a alma, e como teatro do nosso zelo, aonde devemos levar as máximas do Evangelho.

A) Já que o mundo é inimigo de Jesus Cristo, devemos tomar posição diamentralmente oposta às máximas e exemplos do mundo, repetindo-nos muitas vezes o dilema de São Bernardo «Ou Cristo se engana, ou o mundo erra; ora é impossível que a Sabedoria divina se engane: Visto que há oposição manifesta entre o mundo e Jesus é absolutamente necessário escolher posição, porque ninguém pode servir a dois senhores ao mesmo tempo. Ora, Jesus é a Sabedoria infalível; é pois, Ele que tem as palavras da vida eterna, e o mundo é que se engana. A nossa escolha, pois, bem depressa será feita: porquanto diz São Paulo, recebemos, não o espírito deste mundo, mas o Espírito que vem de Deus. Querer agradar ao mundo, acrescenta ele, é desagradar a Jesus Cristo"

E São Tiago acrescenta: "quem quer ser amigo do mundo, torna-se inimigo de Deus"

Por conseguinte, na prática:

1 - Ler e reler o Evangelho, dizendo-nos a nós mesmos que é a eterna verdade quem nos fala, e rogando àquele que o inspirou nos faça compreender, gostar e praticar as suas máximas: é assim que somos verdadeiramente cristãos ou discípulos de Cristo. Quando lemos, pois, ou ouvimos máximas contrárias às do Evangelho, digamo-nos corajosamente: é falso, pois é oposto à infalível verdade.

2 - Evitar as ocasiões perigosas, que por demais se encontram no mundo. É certo que aqueles que não vivem no claustro, são obrigados a conviver com o mundo numa certa medida; mas devem-se preservar do espírito do mundo, vivendo no mundo, como se não fossem deste mundo, pois que Jesus rogou a seu Pai, não que tirasse os seus discípulos do mundo, senão que os preservasse do mal. E São Paulo quer que usemos do mundo, como se dele não usássemos.

3 - É o que devem fazer sobretudo os eclesiásticos; como São Paulo, devem poder dizer que estão crucificados para o mundo, como o mundo está crucificado para eles: «Mihi mundus crucifixus est et ego mundo» . O mundo, sede da concupiscência, não pode ter encantos para nós; não pode inspirar-nos senão repulsão, assim como nós somos para ele um objeto de repulsa, porque o nosso caráter e o nosso hábito é uma condenação dos seus vícios. Devemos, pois, evitar as relações puramente mundanas, em que estaríamos deslocados. Já se entende que temos de fazer e receber visitas de cortesia, de negócios e sobretudo de apostolado; mas essas visitas serão curtas, e não esqueceremos o que se diz de Nosso Senhor depois da sua ressurreição, a saber, que Ele já não fazia a seus discípulos senão raras aparições, e essas eram para completar a sua formação e falar-lhes do reino de Deus

B) Não iremos, pois, ao mundo senão para exercermos direta ou indiretamente o apostolado, isto é, para lhe levarmos as máximas e os exemplos do Evangelho.

1 - Não esqueceremos que somos a luz do mundo: «Vos estis lux mundi»; e, sem transformarmos as nossas conversas numa espécie de pregação (o que pareceria descabido), apreciaremos tudo, as pessoas, os acontecimentos e as coisas à luz do Evangelho; em lugar de proclamarmos felizes os ricos e os fortes, observaremos, com toda a simplicidade que há outras fontes de felicidade diversas da riqueza e da fortuna, que a virtude encontra a sua recompensa já na terra, que as alegrias puras, saboreadas no seio da família, são as mais doces, que a satisfação do dever cumprindo consola muitos desgraçados e que uma boa consciência vale incomparavelmente mais que os inebriamentos do prazer.

Alguns fatos concretos, que citaremos, farão compreender estas observações.

Mas é sobretudo pelo exemplo que um sacerdote edifica no trato com o próximo: quando tudo, no seu porte e no seu falar, reflete a simplicidade, a bondade, a alegria franca, a caridade, numa palavra, a santidade, produz sobre os que o vêem e escutam, uma impressão profunda; ninguém se cansa de admirar aqueles que ajustam o viver às suas convicções, e estima-se uma religião que sabe inspirar virtudes tão sólidas. Ponhamos, pois, em prática o que nos diz Nosso Senhor: «Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai que está nos céus: «5ic luceat lux vestra coram hominibus, ut videant opera vestra bana et glorificent Patrem vestrum qui in caelis est» . E não são unicamente os sacerdotes que praticam este gênero de apostolado; os leigos de arraigadas convicções exercem influência tanto mais benéfica qto é menor a prevenção com que se olham os seus bons exemplos.

2 - É a estes homens de eleição e aos sacerdotes que pertence inspirar aos cristãos mais tímidos a coragem de lutar contra a tirania do respeito humano, da moda ou da perseguição legal. Um dos melhores meios é formar ligas ou associações, compostas de cristãos influentes e corajosos que não temam falar e proceder consoante as suas convicções. Foi assim que os Santos reformaram os costumes do seu tempo. Foi assim que se fundaram nas nossas grandes Escolas e até no Parlamento, grupos compactos que sabem fazer respeitar as suas crenças religiosas e arrastar os hesitantes. No dia em que esses grupos se houverem multiplicados não somente nas cidades mas ainda nos campos, o respeito humano estará bem perto de ser exterminado, e a verdadeira piedade, se não for praticada por todos, será ao menos respeitada.

Por conseguinte, na prática, nada de pactuações com o mundo no sentido em que o definimos, nada de concessões para lhe agradar ou atrair a sua estima. Como diz com razão São Francisco de Sales , «façamos o que fizermos, o mundo mover-nos-á sempre guerra ... Deixemos esse cego, Filotea: deixemo-lo gritar quanto quiser, como uma coruja, para inquietar as aves do dia. Sejamos firmes em nossos projetos, invariáveis em nossas resoluções; a perseverança fará ver bem se estamos desinteressadamente e deveras sacrificados a Deus e consagrados à vida devota». (Introdução à vida devota, V. P. ch. I)

Luta contra o Demônio

Existência e razão de ser da tentação diabólica.

Vimos anteriormente, como o demônio, invejoso da felicidade de nossos primeiros pais, os incitou ao pecado, e bem demais lhe sucederam suas traças; e, assim, o livro da Sabedoria declara que «foi pela inveja do demônio que a morte entrou no mundo: Jnvidia diaboli mors introivit in orbem .

Desde esse momento não cessou de mover guerra aos descendentes de Adão, de lhes estender armadilhas; e posto que, depois da vinda de Nosso Senhor à terra e do seu triunfo sobre Satanás, o império deste inimigo tenha declinado muitíssimo, nem por isso continua sendo menos verdade que temos de lutar não somente contra a carne e sangue, mas ainda contra o poder das trevas e os espíritos malignos.

É São Paulo que no-lo diz: «Não temos que lutar unicamente contra a carne e sangue, mas contra ... os espíritos malignos. Quoniam non est nobis colluctatio adversus carnem et sanguinem, sed adversus ... mundi rectores tenebrarum harum, contra spiritualia nequitiae».

São Pedro compara o demônio a um leão rugidor que gira em torno de nós para nos devorar: «Adversarius vester diabolus, tanquam leo rugiens, circuit quaerens quem devoret»

Se a Providência permite esses ataques, é em virtude do princípio geral que Deus governa as almas não só diretamente, mas também por intermédio das causas segundas, deixando às criaturas uma certa liberdade de ação. Adverte-nos, aliás, que estejamos de sobreaviso, e envia em nosso auxílio os seus bons anjos, em particular o nosso anjo da guarda, para nos proteger , sem falar do socorro que nos dá por si mesmo ou por seu Filho.

Aproveitando-nos desse auxílio, triunfamos do demônio, confirmamo-nos virtude e alcançamos merecimentos para o céu. Este admirável governo da Providência mostra-nos melhor a importância extrema que devemos ligar à nossa salvação e santificação, já que o céu e o inferno estão nisso interessados, e à roda da nossa alma, e por vezes dentro da nossa mesma alma, travam-se entre as potestades celestes e infernais ásperos combates, em que se joga a vida eterna. Para sair vitorioso, vejamos como procede o demônio.

A tática do demônio

A) O demônio não pode influir diretamente sobre as nossas faculdades superiores, a inteligência e a vontade. Deus reservou para si este santuário: só Deus pode penetrar no centro da nossa alma e mover as energias da nossa vontade, sem nos fazer violência: Deus solus animae illabitur.

Pode, porém, o demônio influir diretamente sobre o corpo, sobre os sentidos exteriores e interiores, em particular sobre a imaginação e a memória, bem como sobre as paixões que residem no apetite sensitivo, e por essa via influi indiretamente sobre a vontade que, pelos diversos movimentos da sensibilidade, é solicitada a dar o seu consentimento. Contudo, como nota Santo Tomás, fica sempre livre para consentir ou resistir a esses movimentos passionais: «Voluntas semper remanet libera ad consentiendum vel resistendum passioni»

B) Por outro lado, ainda que o poder do demônio seja muito extenso sobre as faculdades sensitivas e sobre o corpo, esse poder é limitado por Deus, que lhe não permite que nos tente acima das nossas forças: «Fidelis autem Deus est qui non patietur vos tentari supra id quod potestis: sed faciet etiam cum tentatione proventum» . Quem se apóia em Deus com humildade e confiança, está seguro de sair vitorioso

C) Não se deve crer, diz Santo Tomás, que todas as tentações que experimentamos, são obra do demônio: a nossa concupiscência, ativada por hábitos passados e imprudências presentes, basta para explicar grande número delas: «Unusquisque vero tentatur a concupiscentia sua abstractus et illectus» Mas também seria temerário afirmar que ele não tem influência sobre nenhuma tentação, contrariamente à doutrina manifesta da Sagrada Escritura e da Tradição; a sua inveja contra os homens e o desejo, que tem, de os escravizar, explicam suficientemente a sua intervenção

Como reconhecer, pois, a tentação diabólica?

É difícil, pois, que a nossa concupiscência basta para nos tentar violentamente. Pode-se dizer contudo que, se a tentação é repentina, violenta, e de duração desmesurada, tem nela grande parte o demônio. Em especial se pode isso conjeturar, quando a tentação lança na alma uma perturbação profunda e duradoura, quando sugere o gosto de coisas que dão na vista, de mortificações extraordinárias e aparentes, sobretudo quando a alma se sente fortemente inclinada a não dizer nada disso ao seu diretor e a desconfiar dos superiores

Remédios contra a tentação diabólica.

Estes remédios são indicados pelos Santos, e em particular por Santa Teresa

A) O primeiro é oração humilde e confiada, para pôr do nosso lado a Deus e aos seus Anjos. Se Deus está conosco, quem será contra nós? E na verdade, quem pode ser comparado com Deus. «Quis ut Deus?» Esta oração deve ser humilde; porque não há nada que ponha mais rapidamente em fuga o anjo rebelde que, tendo-se revoltado por orgulho, jamais soube praticar esta virtude: humilhar-se diante de Deus, reconhecer a incapacidade de triunfar sem o auxilio do céu, desconcerta os ardis do anjo soberbo. Deve ser confiada, porque, estando a glória de Deus interessada em nosso triunfo, podemos ter plena confiança na eficácia da sua graça.
É bom invocar também a São Miguel que, tendo infligido ao demônio uma insigne derrota, terá sumo prazer em completar a vitória em nós e por nós. O nosso Anjo da Guarda de bom grado o auxiliará, se confiarmos nele. Mas sobretudo não nos esqueçamos de implorar o socorro da Virgem Imaculada, que com seu pé virginal não cessa de esmagar a cabeça da serpente, e é mais terrível ao demônio que um exército em ordem de batalha.

B) O segundo meio é usar com muita confiança dos Sacramentos e Sacramentais. A confissão, por ser um ato de humildade, põe o demônio em fuga, a absolvição que a segue, aplica-nos os merecimentos de Jesus Cristo e torna-nos invulneráveis às flechas do inimigo, a sagrada comunhão, introduzindo em nosso peito Aquele que suplantou Satanás, inspira-lhe um verdadeiro terror. Os mesmos sacramentais, o sinal da Cruz, ou as orações litúrgicas feitas com espírito de fé, em união com a Igreja, são também um precioso auxílio.

Santa Teresa recomenda particularmente a água benta, talvez porque é humilhante para o demônio ver-se assim frustrado em seus ardis por um meio tão simples como aquele.

C) E assim, o último meio é um desprezo soberano do demônio.

É ainda Santa Teresa que no-lo diz: «Muito freqüentemente me atormentam estes malditos; mas inspiram-me muito pouco temor; porque, vejo-o muito bem, eles não podem mexer-se sem a permissão de Deus ... Saibam-no bem, todas as vezes que nós os desprezamos, diminuem as suas forças e a alma adquire sobre eles tanto mais império ... Eles não têm forças mais que sobre as almas covardes, que lhe entregam as armas: mas contra esses, fazem parada do seu poder»

Ver-se desprezar por seres mais fracos é, efetivamente, intolerável humilhação para esses espíritos soberbos. Ora, como já dissemos, apoiados humildemente em Deus, temos o direito e o dever de os desprezar: «Si Deus pro nobis, quis contra nos?» Podem ladrar, não podem morder-nos, a não ser que, por imprudência ou por orgulho, nos lancemos em seu poder: «Latrare potest, mordere non potest nisi volentem».

Assim, pois, a luta que temos que sustentar contra o demônio, bem como contra o mundo e contra a concupiscência, consolida-nos na vida sobrenatural e até nos permite fazer nela progressos.

Conclusão
A vida cristã é, como acabamos de ver, uma luta: luta penosa que, com variadas peripécias, não termina senão na morte; luta de importância capital, pois que nela se joga a vida eterna.

Como ensina São Paulo, há em nós dois homens:

a) o homem regenerado, o homem novo, com tendências nobres, sobrenaturais, divinas, que o Espírito Santo produz em nós, graças aos méritos de Jesus e à intercessão da Santíssima Virgem e dos Santos; tendências, a que nos esforçamos por corresponder, pondo em ação, sob a influência da graça atual, o organismo sobrenatural de que Deus nos dotou.

b) Mas, ao lado, há o homem natural, o homem carnal, o homem velho, com as tendências más, que o batismo não desarraigou de nossa alma: é a tríplice concupiscência, que temos da nossa primeira geração, e que o mundo e o demônio despertam e intensificam; tendência habitual que nos leva ao amor desordenado dos prazeres sensuais, da nossa própria excelência e dos bens da terra.

Estes dois homens entram fatalmente em conflito: a carne, ou o homem velho, deseja e procura o prazer, sem se lhe dar da sua moralidade; o espírito bem lhe recorda que há prazeres proibidos e perigosos que é mister sacrificar ao dever, isto é, à vontade de Deus; mas, como a carne persiste em seus desejos, a vontade, ajudada pela graça, é obrigada a mortificá-la e, se necessário for, a crucificá-la. O cristão é, pois, um soldado, um atleta que combate por uma coroa imortal, até à morte.

Esta luta é perpétua: porquanto, apesar dos nossos esforços, não podemos desembaraçar-nos jamais do homem velho; não podemos senão enfraquecê-lo, encadeá-lo, e fortificar ao mesmo tempo o homem novo contra os seus ataques.

Ao princípio, é, pois, mais viva a luta, mais encarniçada, e as contra-ofensivas do inimigo são mais numerosas e violentas. À medida, porém, que, por meio de esforços enérgicos e constantes, vamos ganhando vitórias, o inimigo vai enfraquecendo, as paixões acalmam, e, salvo certos momentos de provações mandadas por Deus para nos levar a mais alta perfeição, gozamos de relativo sossego, presságio da vitória definitiva.

É à graça de Deus que devemos a vitória.

Não esqueçamos, porém, que as graças, que são dadas, são graças de combate, e não de repouso, que somos lutadores, atletas, ascetas, e que devemos, como São Paulo, lutar até o fim, para merecer a nossa coroa: «Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Não me resta mais que receber a coroa de justiça que me dará o Senhor: Bonum certamen certa vi, cursum consummavi, fidem servasi. In reliquo est mihi coroa iustiotiae quam reddet mihi Dominus".

É o meio de aperfeiçoar em nós a vida cristã e de adquirir abundantes méritos.

Deus seja louvado!!

Depois veremos: Crescer na Vida Espiritual pelo Mérito:

1 - A Vida da Graça - Um tesouro a adquirir
2 - Queda e Castigo
3 - Redenção
4 - Natureza da Graça
5 - Do Organismo da Vida Cristã
6 - União entre a alma e Deus
7 - Das Virtudes e dos Dons
8 - Da Graça Atual
9 - Da parte de Jesus Cristo na vida cristã
10 -Da parte de Virgem Maria na vida cristã

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